Então, o doutor disse
que ela não era real e que eu precisava lembrar disso para manter a minha
lucidez. Mas a sala dele era tão bonita e cheia de coisas e livros em cima de
coisas. Tinha um sofá que ele não chamava de sofá. Alguns quebra cabeças de
montar juntando poeira. Um bloco de notas amarelo. Um daqueles telefones bem
velhos e engraçados. E janelas grandes sem cortinas. “... e esse aqui vai
ajudar você com o problema no desvio de atenção. Porque está olhando para a
janela? É ela de novo, não é?” e como ele sabia se ela não era real? “Não” eu
menti “Não a vi hoje doutor. Acho que estou melhorando. Será que estou curado?”
Enquanto ele decidia o que eu tinha dito através dos segredos dele que viam
além das palavras, ela pulava a janela para entrar na sala com aquele sorriso
no...
Maldito seja o mentiroso. Quando ela passou
pela janela ele virou. Ele sabe. Ele vê. Mas como? Porque? “Não brinque com
isso. Sua saúde é um assunto muito sério. Agora peque os seus remédios e vá
para casa descansar.” Eu fui. Nós fomos. Ela estava muito divertida hoje. Tão
divertida. Derrubou os remédios no chão quando a enfermeira ia pegar os meus e
a pobre moça ainda pediu desculpas. No caminho, ela rabiscava o meu nome nas
paredes com um chaveiro de caveira. No elevador ela fazia caretas pras câmeras
e pro espelho. E no estacionamento ela arranhou os carros com uma corrente da
sua roupa e o doutor ouviu. Porque olhou pra nós. Pra mim. Não é que não
pudesse vê-la, eu sei, mas ele não quer que eu saiba. Não queria que eu soubesse.
Mas sabia. Sei. Eu fui para o meu carro e ela fazia gestos para ele que seriam
obcenos em algum lugar do mundo ou só para ela. O doutor nem piscou. O
farçante. No caminho para casa, ela jogou o meu rádio pela janela e quase
causou um acidente. Culpa de algum desses astros teens. Odeio eles. Odiamos
eles. Nós estávamos tão animados. Ela estava e me animou. Mas eu não conseguia
esquecer o doutor. Eu sabia e ele também.
Em casa a gente subia as escadas e os vizinhos
ignoravam ela. Passavam por ela. Menos os gatos. Os gatos amavam ela e tinham
ciúmes de mim. Mas ela preferia ficar perto de mim, eu acho, porque eu sei
falar e desenhar. Ou quem sabe ela gosta da minha voz? Minha casa é cheia de
desenhos das histórias que ela me conta. Uma parede é pintada todinha com uma
cidade de rios por ruas que ela descreveu para mim e outra tem centenas de
papéis de anotações que formam a cidade com o prédio estranho bem como ela
disse. Ela vive me contando historias e eu lembro quase tudo. Menos os nomes.
Mas eu desenhava os lugares e as pessoas e ela ficava olhando para eles até eu
ficar com ciúmes. Fica ainda. Tal qual os gatos. Mas ela voltava para mim. Ela
que me convenceu a estudar desenho quando eu era pequeno. Desde que eu consigo
lembrar, ela estava lá. Quando as luzes se apagavam e as outras crianças tinham
medo do escuro, ela falava comigo até eu dormir. Eu sabia o que tinha no
escuro, ela.
“Você precisa de sorvete” ela disse olhando
pela janela “ e vodka”. Tudo era bom com vodka na cabeça dela, mas era só eu
que bebia. Ela só olhava as garrafas e dizia todos os nomes, hoje quando ela
corria entre as bebidas aquela corrente derrubou umas três delas. Ela estava se
vestindo estranho hoje com umas roupas de motoqueiro com jaqueta e tudo. Era
sempre uma roupa diferente, às vezes de homem, às vezes de mulher. Paguei o
sorvete e a vodka e não lembro de mais nada. Nem onde acordei, nem se eu dormi.
Só lembro de estar voltando a pé para casa e lembrar de pegar um ônibus. Ela
estava lá me esperando. “Fiquei tão preocupada... Senta aqui na janela... Abre
o vidro...” Ela me perdia sempre que eu bebia demais, mas quando eu bebia ela
ficava mais viva até sumir. Outro defeito é que ela sempre falava demais quando
eu tinha ressaca. Foi quase um alivio quando a velha chegou e sentou em cima
dela.
Agora talvez você ache
que entenda. Nos entenda. Me entenda. Não. Ela não é sempre inofensiva. Já me
convenceu a invadir casas e algumas delas eram cenas de crimes e uma vez eu até
acabei levando pra casa a arma do crime. Ela sabe coisas estranhas. Coisas que
eu acho que não aconteceram. Ela me conta essas coisas e me ensina coisas. Eu
sei me guiar pelas estrelas, umas palavras em italiano e russo, fazer panquecas
e ela até me ensinou a usar uma espada como aquelas dos Mosqueteiros. Eu adoro
o filme e a gente revivia as cenas juntos até ela dizer que se eu continuasse
praticando, logo estaria pronto. Nunca mais vi aquele filme. E ela me conta
como os lobos agem sempre que quer me ensinar, com aquela mesma expressão de
lembrança com que conta as histórias de monstros. Aquele rosto... às vezes eu
acho que ela é louca. Que eu sou louco. Tudo culpa do doutor essas dúvidas. Ele
parece tão certo às vezes, mas sempre percebe quando ela chega ou faz alguma
coisa. Logo ela existe e ele pode ver, mas por que mentir?
Eu preciso saber. Não
sei como e só tenho uma pessoa para pedir ajuda. Ela. Mas não agora. Eu não
gosto dessa rua escura e nem do carro da polícia. Azul e branco com luzes
vermelhas. Uma porta aberta e uma caixa de doces. Ela já está dentro do carro
fingindo que está presa com algema e tudo. Odeio passar trotes para a polícia,
eles podia estar salvando alguém ou sei lá. Alguma coisa. Eu já morei nessa rua,
mas compraram todas as casas para fazer uma fabrica e depois começaram uma
daquelas escavações de história, mas nada deu certo. Agora é uma meia fabrica
meio escavada e um completo monte de lama. Da pra ver as pegadas dos policiais
na lama. Só dois e ela fica pulando de uma trilha pra outra. É tudo tão escuro,
eu fico quase assustado. Quase. Eu só conseguia ver perto de mim, sabe quando
só tem a luz das estrelas e a luz vermelha dançando de um lado pro outro. O
lugar é perigoso, sabe? Com chão que afunda e maquinas velhas e buracos pra lá
e pra cá e ferramentas abandonadas e construções pela metade e coisas velhas e
podres e sei lá... fantasmas. Todo lugar velho tem fantasmas. Por que não esse?
Andando com os pés cheios de lama até que eu posso só por um segundo ver os
dois. Conversando, fazendo piadas. Então ela aperta o meu braço e eu estou de
volta no carro cansado e sujo de lama. Ela tá andando de um lado pro outro
irritada como nunca. “Por que você não me disse?” e tem uma dor no meu rosto “E
você ainda duvidou de mim?” minha mão estava inchada e tava sangrando um pouco
“Achei que confiava em mim...” eu tinha uma arma na cintura “ O que aconteceu
comigo?” eu não podia responder o que ela queria saber.
Uma voz começou a sair
do meu celular e eu nem tinha percebido ele. “O que foi rapaz, precisa de
ajuda?” era o doutor. Ai ele pediu para eu responder e chamar ele. Porque não?
Eu precisava mesmo de ajuda, mas o doutor devia saber que era ideia dela.
Queria que eu tomasse meus remedios e encontrasse com ele no consultório. Ela
disse que ali era melhor e que a gente ia desmascarar ele. Eu acreditei. Ele
cedeu. Nós começamos a planejar sem responder as perguntas porque ela não
queria dizer o que aconteceu e eu não queria que ela soubesse o quanto o doutor
afetou a minha sanidade. Eu escondi o carro da polícia atrás de uma das
máquinas velhas e fiz três fogueiras onde ela pediu. Eu sei fazer fogueiras
também. Me faz sentir um sobrevivente. Eu fiquei lá esperando no meio da
escavação bem na frente de um buraco. Nem sinal dos policiais. E nem sinal de
nada, nem dela. E ai, as dúvidas vinham de novo. Se ela não existe o quão louco
eu sou? Mas se ela existe não seria loucura duvidar? E o doutor? Ele é louco
também?
Não tinha mais tempo,
ele chegou. Senti um calafrio na espinha. Medo. De que? De quem? O carro do
doutor era verde, mas parecia preto ali naquela escuridão toda. Quatro portas,
meio quadrado e velho. Ele olhava de um lado para o outro e soltava fumaça da
boca feito um demônio com camisa de lã e óculos embaçados. Os sapatos eram sua
única vaidade e estavam afundando na lama. As mãos mexiam nervosamente no
celular e quando o meu celular tocou eu sabia que era ele. Levantei e acenei.
Tive medo de responder e ouvir a voz eloquente dele. Ele veio devagar e deliberadamente
olhando tudo em volta como se estivesse com medo, mas era só esperteza. Ele
sabia alguma coisa.
Ela estava escondida
dentro do buraco e eu não sabia porque. Era para me vigiar? Ver o doutor? Se
esconder dele? Eu queria sair daquela confusão e só para me sentir seguro e
mais forte eu toquei na arma. Só por um instante. “Qual o problema? O que você
está fazendo aqui?” Não tinha medo nenhum na voz dele, mas tinha alguma outra
coisa que ele estava escondendo “Como você veio para cá? Cade o seu carro?” acho
que ele suspeitava da gente. Fiquei com medo do que ela ia fazer. Medo dele.
Dela. Me senti sozinho de verdade pela primeira vez na vida. Sozinho de
verdade. Sozinho ruim. “O senhor chegou rápido, estava aqui perto?” Será que
ele tinha me seguido? “estava naquele restaurante que vende o café com creme
que você provou na primeira consulta. Trouxe um para você, está no carro. Vem
pegar comigo.” E fácil assim eu comecei a andar, o café era muito bom mesmo.”
Ei, não vai. Ele tá te enganando. Ele sabe que eu to aqui.” E quando olhei para
ele, ele estava olhando pro buraco. Ele sabia de tudo. Maldito. Ele olhou. Ele
ouviu. Ele tinha que fugir ou me enganar de novo.
“Algum problema garoto? Vamos conversar no carro sobre o que aconteceu com você. Sobre quem te deixou aqui. Quem te machucou.” Ela me machucou de algum jeito, ela me trouxe até aqui e eu te trouxe até aqui. Eu quase falei. Mas por que aqui? Eu não quero mais a ajuda dele. “Eu não quero mais você aqui, vai embora. “ Ela não queria deixar “Não pode deixar ele ir, ele sabe. Ele vai me afastar de você.” e ele não queria ir “ Não posso deixar você aqui sozinho, vem comigo”. Ele se aproximou devagar olhando outra vez para o buraco. Ela estava gritando alguma coisa, dizendo que ele ia me fazer mal. Que ele ia matar ela. Mas como? Ele acreditava nela? Ele ia tocar nela? Ele falava e falava tentando me distrair, tentando abafar a voz dela. “ Tudo vai ficar bem. Eu vou te levar para casa. Vou ajudar você” e coisas assim. Era tudo tão confuso. Então ele estava perto demais e eu tantei pegar a arma só para me sentir seguro. Só para me sentir melhor. Mas ele tentou tirar a arma de mim. Eu era mais rápido. Ele era mais forte. Os óculos embaçados caíram do rosto dele. Eu sentia o café no hálito dele. Eu podia ver as veias e vasos no rosto dele que ficou todo vermelho. Tão rápido. Um estrondo. Um impacto. A Arma disparou e eu estou de costas no chão. Eu vi os filmes. Eu devia morrer agora. Mas era o doutor que gritava. E o tempo todo ela falava comigo. No começo eu não entendi. Não queria mais nada. Mas ela ficava repetindo. “Empurra ele pra cá”.
“Algum problema garoto? Vamos conversar no carro sobre o que aconteceu com você. Sobre quem te deixou aqui. Quem te machucou.” Ela me machucou de algum jeito, ela me trouxe até aqui e eu te trouxe até aqui. Eu quase falei. Mas por que aqui? Eu não quero mais a ajuda dele. “Eu não quero mais você aqui, vai embora. “ Ela não queria deixar “Não pode deixar ele ir, ele sabe. Ele vai me afastar de você.” e ele não queria ir “ Não posso deixar você aqui sozinho, vem comigo”. Ele se aproximou devagar olhando outra vez para o buraco. Ela estava gritando alguma coisa, dizendo que ele ia me fazer mal. Que ele ia matar ela. Mas como? Ele acreditava nela? Ele ia tocar nela? Ele falava e falava tentando me distrair, tentando abafar a voz dela. “ Tudo vai ficar bem. Eu vou te levar para casa. Vou ajudar você” e coisas assim. Era tudo tão confuso. Então ele estava perto demais e eu tantei pegar a arma só para me sentir seguro. Só para me sentir melhor. Mas ele tentou tirar a arma de mim. Eu era mais rápido. Ele era mais forte. Os óculos embaçados caíram do rosto dele. Eu sentia o café no hálito dele. Eu podia ver as veias e vasos no rosto dele que ficou todo vermelho. Tão rápido. Um estrondo. Um impacto. A Arma disparou e eu estou de costas no chão. Eu vi os filmes. Eu devia morrer agora. Mas era o doutor que gritava. E o tempo todo ela falava comigo. No começo eu não entendi. Não queria mais nada. Mas ela ficava repetindo. “Empurra ele pra cá”.
O que mais eu podia
fazer? Foi difícil mesmo assim porque ele chorava. Dizia que eu era um bom
rapaz e que era melhor eu chamar uma ambulância do que levar ele de carro pro hospital.
Ele não estava entendendo. Ele não ouvia ela ou não entendia ou era só uma
tentativa desesperada. Mas eu vi tanto alívio quando eu levantei ele, que
fiquei com pena por um instante. E se fosse só uma farça? Eu olhei nos olhos
dele. Mesmo assim não tinha nenhuma verdade absoluta. Nenhuma revelação naquele
olhar que antecede a morte. Por um doutor que talvez tenha existido eu senti
remorso “ Me desculpa...” e ele se segurou em mim, fraco. Por um doutor que
talvez tenha existido eu senti ódio e empurrei. O grito foi terrível e se
alongou da realidade para os meus pensamentos e se fixou entre as minhas
lembranças. O último suspiro das minhas dúvidas, o bálsamo da minha sanidade.
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