quinta-feira, 24 de maio de 2012

Um dia qualquer

                    
         A praça estava cheia de vozes. Risadas preenchiam o final de tarde nublado de alegria e conversas agradáveis faziam as pessoas se manterem aquecidas por dentro. As crianças corriam de um lado para o outro, se divertindo sem se preocupar com os perigos que a vida podia trazer.
            - Você nem brincou, querida. – disse uma mulher que aparentava ter trinta anos. – Seus irmãos estão brincando.
            - Eles são crianças, mamãe. – respondeu uma menina – Eu já tenho treze anos. Não sou mais criança! – ela revirou os olhos e cruzou os braços.
            Sua mãe sorriu e deu um beijo em sua testa. – Você sempre vai ser minha princesa, querida. – Ela levantou e foi até os dois meninos que estavam sentados na areia. – Hora de ir pra casa, meus amores.
            As duas crianças eram idênticas e fizeram a mesma expressão triste quando sua mãe segurou a mão de cada um deles. Eles tinham apenas cinco anos. – Não fiquem tristes. – ela disse com uma voz doce. - Já está ficando tarde e olha, – disse, apontando para o céu – parece que vai chover. – as duas crianças não pareciam ter ficado menos tristes por isso. – Quando chegarmos em casa, mamãe vai dar sorvete pra vocês, o que acham? – Dois rostinhos idênticos se iluminaram e deram um sorriso. – Com bolo, mamãe? – perguntou um deles. – De chocolate! – disse o outro. E os três caminharem até o banco onde a irmã deles estava.
            Eles moravam em uma casa grande da vizinhança que ficava bem próxima da praça. Todos os dias de tarde, a mãe levava as crianças pra brincar ali e elas adoravam, exceto pela menina, que raramente ia com eles. Hoje, a noite parecia que ia ser fria e chuvosa. Alguns relâmpagos já cruzavam o céu e as pessoas começavam a caminhar cada vez mais rápido com suas crianças para chegar em um lugar seguro. Eles moravam na quarta casa da segunda rua, virando à esquerda. O caminho não era longo, mas estava parecendo nesse dia. A chuva começou de repente e fez os quatro começarem a correr. A mãe pegou um dos meninos no colo e a irmã pegou o outro. A chuva começou a ficar tão forte, que no momento que eles conseguiram chegar em casa, eles já estavam todos molhados e as crianças chorando com medo dos barulhos dos trovões.
            - Dá banho nos seus irmãos, querida. – disse a mãe colocando o menino no chão quando entraram em casa. – E toma um banho também. Eu vou preparar algo quente pra vocês.
            - Sem sorvete, mamãe? – perguntou um dos meninos.
            - Mais tarde, querido. – ela respondeu com um sorriso. – Agora, vão logo antes que fiquem doentes. – disse, parando antes de entrar na cozinha. – Ah, e me joguem uma toalha.
            Os três subiram deixando um rastro de água e lama pra trás. A casa era grande, mas aconchegante. Moravam somente os quatro, o pai das crianças havia morrido há alguns anos e desde então, eles moravam sozinhos. A menina acendeu a luz do corredor e pegou a mão de cada um dos seus irmãos.
            - Vocês estão tão sujos! –  disse rindo. – Eu não ficava assim quando tinha a idade de vocês.
            - Ficava sim! – disse um deles rindo.
            Ela soltou a mão dos dois e agarrou um deles. – Não ficava não! Nem suja aqui, nem aqui e nem aqui! – E cada vez que ela falava "aqui", fazia cosquinhas no irmão. E ele ria e ria e ria. O outro irmão ria também, mas conseguiu escapar dela, quando ela tentou ir atrás dele. Os três correram pro banheiro rindo. – Joga a toalha pra mamãe, vai. – Ela disse entregando uma toalha na mão de um dos meninos. – E volta rápido ou então, vai ter mais cosquinha! – O menininho saiu correndo e ela ouviu os passos dele ecoarem pelo corredor até a escada. Colocou seu outro irmão debaixo do chuveiro e pegou o sabonete pra passar nele. – Não! – ele disse – Eu sou grande. – Ela riu e entregou o sabonete pra ele, depois andou até a pia e lavou o rosto. Estava toda suja por ter carregado seu irmão no colo e com as roupas ensopadas. Meu cabelo tá um desastre. Foi a única coisa que pensou quando se olhou no espelho. Tirou as roupas e as jogou em um canto. Talvez tenha demorado tempo demais pra perceber que os passos do seu irmão tinham parado e que ele ainda não tinha voltado pro banheiro. Ela olhou para o irmão tomando banho e saiu do banheiro enrolada em uma toalha macia. O corredor estava vazio. – Mãe? – chamou em duvida. – Cadê o ... – mas sua voz foi abafada por alguma coisa que segurava a sua boca.
            Ela levou as mãos instintivamente ao rosto. Alguém a segurava. O desespero tomou conta dela e seu coração parecia gelado. Seu corpo não parecia responder ao que ela queria fazer e os pensamentos passavam rápido demais em sua mente. Tentou gritar, mas só sufocava mais. O ar parecia não ser mais suficiente. Eu vou morrer. Ela tentou chutar e socar o homem que a segurava. Sabia que era homem, ele tinha muitos pelos nos braços e a pele era áspera. Ele tentou puxá-la pra trás, mas ela abriu a boca e fechou com toda a força que conseguiu reunir no meio do desespero.
            - Sua vadiazinha! – o homem falou com raiva, tirando a mão com força e sacudindo ela no ar. – Volta aqui.
            Ela tentou correr, mas suas pernas não a obedeciam. O homem a segurou novamente e ela sentiu uma pontada no pescoço. – Fica quietinha. Shhh – o homem riu descontroladamente, mas, logo depois, ficou em silencio. – Colabora ou vou te mandar pra cova junto com aquela vadia.
            Um calafrio percorreu todo o seu corpo e deixou seu coração gelado. Ela soube instintivamente que ele falava de sua mãe. Ela está morta. Mãe, não. Ela ainda não sabia o que tinha acontecido com o seu irmão. Ele pode ter se escondido. O homem tirou a faca de perto do pescoço dela e a segurou com mais força. Ela parou de se debater, como se tivesse perdido as forças. Não fazia ideia do que aquele homem queria. O medo se instalou em sua alma. Ele a carregou escada abaixo até chegar à cozinha. Ela fechou os olhos enquanto eles desciam, não estava preparada para ver o que podia ter lá. Fechar os olhos não havia sido uma boa ideia. Como se sua mente estivesse brincando com ela, todos os seus medos apareceram de uma só vez. Mas o terror de ver a sua mãe morta era maior. Seus olhos continuaram fechados. 
            O aperto do homem a deixava com nojo. Ela queria se soltar, a toalha já tinha caído de tanto ela se debater e agora, estava sem roupa. Ela conseguia ainda sentir vergonha por isso. E o homem estava tão perto dela, com todos aqueles pelos e aquela mão forte que a segurava.  – Aqui. – Ele falou quase como em um sussurro. – Abre a porra dos olhos. – Ela fez o que ele mandou.
            Sua mãe estava deitada no chão da cozinha. Com as pernas e os braços abertos. –Mãe...- ela sussurrou, mas suas palavras foram perdidas. Sua mãe não estava viva. Seus olhos azuis haviam perdido a vida. A única coisa que parecia viva era o sangue, que escorria pelo chão e dava um tom de terror ao lugar.
            O homem a sentou em uma cadeira e a amarrou ali. – Sem gritar, garota. Sem gritar. – Ele repetia enquanto a amarrava pelada na cadeira. Ela não ia gritar. Ela não estava ali. Era um sonho. Um pesadelo. Ela só tinha que acordar. O homem colocou a cadeira de frente para a mãe dela e sumiu. Ainda escutou os passos dele por alguns minutos, mas não conseguia se concentrar em nada. Tentou se soltar enquanto ele não estava vendo, mas quanto mais ela tentava, mais presa  parecia ficar.  Se debateu tanto que a cadeira caiu de lado e ela ficou com o rosto no sangue. Sua boca estava amordaçada e tudo o que ela conseguia fazer, era soltar gemidos. As lágrimas brotavam em seus olhos sem ela perceber. Era difícil até chorar. O homem voltou alguns minutos depois com um dos seus irmãos. Ele ainda estava vivo. Ela podia ver. Ele olhava pra ela com aqueles olhos assustados, os mesmos olhos azuis da sua mãe. Esse era o irmão que estava tomando banho. E o Vinicius, onde está? Ela olhou ao redor, mas Vinicius não estava em lugar nenhum. O homem colocou seu irmão em outra cadeira e o amarrou. Ele chorava, mas não fazia nenhum som. O homem foi até ela e colocou a cadeira dela em pé novamente. Ela olhou para aquele homem direito pela primeira vez. O cabelo curto e a pele clara. Olhos tristes e vagos. Ele não parecia saber o que estava fazendo, mas alguma coisa naqueles olhos deixava transparecer raiva e talvez, medo. Era difícil dizer. Ele era um homem forte e tinha uma faca na mão e isso já era o suficiente para deixá-la assustada.
            Ela olhou novamente para seu irmão, o homem estava indo até ele. Ele o carregou até perto de onde ela estava e o largou lá. O menino estava todo molhado e pelado também. Diego... Deus, por favor. Se você existe, me ajuda. Diego estava apavorado e Vinicius estava em algum lugar daquela casa. Sua mãe estava morta no chão da cozinha e a pobre menina agora, se sentia uma criança. Como ela queria ter brincado no parquinho uma última vez com os seus irmãos.
            O tempo passava devagar e ela já não conseguia sentir o próprio corpo. O homem andava pela casa, procurando seu irmão, ela sabia. Ele gritava o nome dele. – Vinicius! Vem brincar com o tio. – E a pequena menina torcia para que seu irmão tivesse fugido pela janela. Ela não sabia como o homem sabia o nome de seu irmão, mas ela devia ter falado em algum momento. Era difícil dizer o que ela pensava e o que era transformado em palavras. Ela olhou o relógio da cozinha e percebeu que não tinham se passado nem meia hora desde que eles chegaram em casa, mas o tempo parecia se arrastar, como se quisesse que ela vivesse aquilo por mais tempo. A chuva já havia parado, agora que ela tinha prestado atenção. As coisas pareciam calmas. Como o mundo podia continuar a existir quando eles estavam ali com aquele monstro em forma de pessoa? Ela fechou os olhos mais uma vez. Sua cabeça começava a doer. Ela estava com fome e com sede e nem sua mente parecia obedecê-la mais. Ela começou a lembrar de coisas que nem sabia que existia. Momentos com a mãe e até com o pai. Lembrou de uma viagem à casa de praia, de como o pai dela tinha ficado todo vermelho por ter ficado muito tempo no Sol e de como sua mãe tinha ficado bonita rindo dele. Lembrou de não conseguir dormir com os seus irmãos chorando. E da sua mãe sempre paciente falando para ela ficar calma que o papai já estava cuidado deles.
            Ela foi tirada de seus devaneios tão subitamente quanto havia entrado. O homem estava ali novamente, mas sem o seu irmão. Ele parecia preocupado e nervoso. Alguma coisa estava errada, ela sabia disso. O homem chegou perto dela e cuspiu no chão. Ela ainda conseguia sentir seu rosto sujo de sangue. Ela ouvia a respiração pesada do homem e percebia o jeito como ele olhava para ela. O pânico tomou conta dela novamente. Ela se sentia gelada e não conseguia pensar. Ele veio para perto dela e segurou o seu pescoço. – Seu irmão. Onde ele está? – O homem perguntou com raiva na voz. – Agora. Sem joguinhos, sua vadiazinha. – Ele disse olhando em volta. Respirou fundo e tentou falar. Ele tirou o pedaço de pano que a impedia de falar e ela conseguiu ao menos respirar direito. – Onde? – ele repetiu apertando a faca contra o pescoço dela. – Eu... não.. sei. – Disse, tentando respirar ao mesmo tempo e começou a tossir. O homem olhou para ela e ela nem percebeu o que a havia atingido. Ela sentiu uma dor gelada no rosto e logo depois tudo ficou quente e as coisas pareciam fora de foco. Ele me bateu. Mãe... Deus... por favor. Eu não quero morrer. Ela sentiu o baque da cadeira caindo no chão de novo e sentiu o homem a levantando e gritando com ela. Mas ela não estava ali. Ela era outra pessoa. Pesadelo. Acorda. E ela acordou e viu sua mãe morta no chão. E seu irmão ao seu lado e o homem ao lado dele. Ele estava batendo no seu irmão. Batendo... não. Ele é tão pequeno e frágil. Bebê. – Não. –  tentou gritar, mas tudo o que saiu foi um gemido rouco. O homem olhou pra ela e riu. – Protegendo o babaquinha aqui? Eu devia fazer um pequeno filme com vocês dois. Eu devia enfiar a minha mão em você e fazer você transformar esse bebê aqui em um homem. Como eu. – E ele riu. Como se aquilo fosse normal. A menina estava horrorizada. Deus, por favor. Faz ele me matar. Não. Faz ele morrer. Me tira daqui. Eu tenho medo. Medo. Por favor... Suas orações foram interrompidas pela voz do homem. – Não se preocupe, criança. Eu não vou encostar em você. – ele disse olhando pra ela. – Vamos tornar as coisas mais interessantes, quem sabe seu querido irmão Vinicius não aparece. – o homem falou com raiva. – Eu quero uma câmera.
            Ela demorou tempo demais pra perceber que ele estava falando com ela. E sentiu novamente aquele frio no rosto e o quente logo depois. E novamente a cadeira caiu de lado. – Tem... ali. – Ela tentou dizer. – Na sala... gaveta do armário. – A voz dela saiu falhada e confusa, mas o homem pareceu entender. Ele saiu de perto deles e voltou logo depois com uma câmera de filmar. Ele levantou a cadeira da menina novamente e a mudou de posição. Colocou a cadeira de frente pra mesa da cozinha e logo depois posicionou a câmera para que mostrasse a menina e a mesa. Ela não entendia. O que ele ia fazer com aquela câmera? Ele tinha falado alguma coisa de filme, ela sabia que ele tinha. Mas tudo parecia tão distante. Tão irreal. O homem pegou a cadeira com o seu irmão e colocou do outro lado da mesa, num lugar onde uma parte dele também apareceria na câmera. – Vamos começar com essa aqui. – O homem disse e pegou o corpo da mãe e a colocou em cima da mesa. Tinha sangue por todos os lados. Diego arregalou os olhos e lágrimas começaram a escorrer deles. Ele não podia gritar, mas dava pra perceber que estava tentando. A menina respirou fundo. Ela podia gritar, mas não conseguia. Todas as forças haviam deixado o seu corpo novamente e tudo o que ela conseguia fazer era olhar para a sua mãe. O homem pegou uma faca diferente em cima da pia e voltou para perto deles. – É hora do lanche, garotos. – Ele disse como se fosse um dia normal. – Hora de preparar um prato delicioso.
            Ela não acreditou no que estava vendo. O homem começou a tirar os olhos de sua mãe. Vinicius tinha começado a se debater na cadeira, mas o homem parecia não ligar. Ele estava concentrado demais. Ela vomitou mais de uma vez. Não conseguia lembrar quantas. Deve ter desmaiado, pois, quando abriu os olhos novamente, o homem estava com um prato na mão e um cheiro estranho invadia a cozinha. – Minha especialidade. Olhos fritos com azeite. – E depois, ria. E ria. E a menina vomitava novamente. – Me mata. – Ela conseguiu sussurrar. - Por favor... - O que diabos você ta fazendo? Isso não pode ser real... Deus, por favor. Seu irmão devia estar desmaiado, pois o corpo dele pendia para um lado e não fazia movimentos. O homem olhou para ela e depois olhou para o menino, como se fazendo uma escolha e logo depois soltou o prato na pia. – Vamos repetir. – Ele disse. – Diego, pequeno Diego.
            Ela olhou horrorizada ao homem acordar seu irmão com tapas. O pobre menino abriu os olhos e começou a se debater novamente e dessa vez, enquanto a faca entrava nos olhos de seu irmão, ela conseguiu gritar. E ela gritava de desespero, de ódio. Ela não sabia da onde havia tirado tanta força, mas o homem parecia não se importar. Seu irmão se debatia com toda força enquanto o homem arrancava seus olhos. Ela viu quando o corpo de seu irmão desistiu da luta e perdeu a vida. Ela viu quando o homem colocou os olhos de seu irmão em uma panela no fogão. Ela assistiu aquilo tudo e não se deu conta de que tinha parado de gritar até ter escutado as sirenes da policia na rua. Ele vai me matar. Deus. Deuses. Mãe... alguém. Por favor. Não deixa. Mas o homem parecia distraído com outra coisa e não notou o barulho do lado de fora. Ela tentou se soltar, mas não conseguia. O homem tinha achado seu outro irmão. Ele estava escondido o tempo todo debaixo do armário da cozinha. Como ele... não. Por favor. Deixa ele. – Ei, eu to aqui! – ela tentou gritar. – Não, por favor. Deixa ele! – ela disse quase sussurrando. – Não! – Ela escutou o grito do seu irmão. O grito de desespero. Grito de medo e dor. E ela gritou junto. Ou talvez não tenha gritado... Talvez o grito tivesse sido de outra pessoa. Tinha tanto barulho. A gente ainda tá no parquinho. Eu sou sua princesa, mamãe. E depois, tudo era escuridão.





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