sexta-feira, 15 de junho de 2012

Petraack


O nascimento dele cumpria uma profecia, mas isso não era de se estranhar naquela tribo. O Oráculo da tribo era particularmente prolífico com suas adivinhações e, como os bárbaros não eram capazes de diferenciar uma adivinhação de uma profecia verdadeira, todos os dias eram proféticos, seja porque o Oráculo havia dito que iria chover, seja porque ele havia dito que surgiria, depois de meio século, o líder que ergueria o nome da tribo para a glória, nascendo em sangue e realizando sua primeira morte apenas com sua presença.
 Quando ele veio ao mundo, tinha pouco mais que duas vezes o tamanho de uma criança normal. Sua mãe morrera no meio do parto, suas partes não aguentando o tamanho descomunal da criança. Quando o pai dele chegou com uma espada para abrir o ventre da mãe, descobriu que a parteira havia conseguido retirá-lo de dentro do cadáver ainda fresco da jovem mulher. Havia nascido em sangue, e sua presença havia matado sua mãe. Conforme o Oráculo havia dito em sua juventude.
 Houve risos e lágrimas, alegria e tristeza. A tribo estava em festa. Haviam capturado no dia uma rica caravana que se atrevera a atravessar a parte rochosa do deserto para chegar à capital. Para chegar à Horizonte. Os mais ricos vinhos e as mais requintadas comidas foram servidos, para comemorar o nascimento de Petraack, o Gigante, e honrar a morte de Esposa do Líder, e o líder havia eleito outra mulher de seu harém para ser sua esposa. A vida continuaria sem problemas. Os bárbaros do deserto eram famosos por suportar tudo.
  Os anos se passaram sem muitos problemas até que começaram o treinamento com as armas, aos seis anos. Petraack já tinha o tamanho de uma criança de dez, e era mais forte do que a maioria das crianças de dez. Era capaz de falar sem problemas, mas contar não era seu forte. Pelo menos depois que passava de cinco. Mas isso não era o suficiente para tratá-lo por burro. Ele tinha uma espécie de instinto em combate que lhe dizia o que fazer. Infelizmente isso só foi descoberto quando ele matou outra criança no treino. A arma de madeira havia se partido com o poderoso golpe da criança grande, diretamente no pescoço da menor, partindo junto os ossos em um estalo alto e molhado. Ele era incapaz de controlar sua força. Enquanto todos os guerreiros do deserto lutavam com graça e agilidade, Petraack era todo brutalidade e velocidade.
 Aos doze, ele tinha o tamanho de um homem completamente crescido. Ao invés das espadas curvas típicas da tribo, seu pai havia lhe dado um pesado machado feito de ouro. O Oráculo da Tribo havia encantado o ouro para que se tornasse duro como o aço forjado. Cumprindo, segundo ele mesmo, outra parte da profecia.
Aos treze, por ter enfrentado e derrotado em combate dois homens adultos, lhe foi permitido que saísse com os salteadores. Foi uma era de ouro para a tribo. Ele parecia farejar as caravanas, via rastros onde mais ninguém era capaz, e a despeito de estar beirando dois metros, era furtivo como um gato. Havia deixado o cabelo crescer e os prendia em dreadlock, dando uma aparência ainda mais selvagem para sua pele tão escura que parecia azulada, sempre coberta de óleos aromáticos. Parecia não sentir o calor do sol. Enquanto caçava, não tinha fome nem sede. O sol brilhava mais forte para ele. Aos catorze já havia capturado sua primeira mulher, mas ela não suportou a gravidez subsequente, morrendo junto com a criança.
  Quando ele finalmente chegou à maioridade, ele beirava os dois metros e meio e pesava mais de duzentos quilos, seus músculos eram inchados e não havia armadura de metal que lhe servisse. Não usava escudo, apenas seu machado de ouro que, estranhamente, havia crescido junto com ele. O Oráculo havia profetizado que aquele machado era originalmente de um deus esquecido, e que seu poder cresceria a cada morte. Petraack tinha onze mulheres, havendo superado o próprio pai e oito delas estavam em diferentes estágios de gravidez. Até o fatídico dia.
 Ele havia encontrado uma fissura e sua intuição lhe dizia que havia ouro nela. Ele manda seus homens voltarem e procurarem caravanas. Queria a glória só para ele dessa vez. Ele avança com dificuldade, afinal, seu tamanho o impedia de ir tranquilamente. Usava uma espada curta que fazia as vezes de adaga em sua mão, pois não conseguiria balançar o seu machado para nada.
  O caminho seguia numa descida que parecia ficar cada vez mais íngreme, até que o bárbaro estava usando o tamanho de seu corpo para evitar escorregar e cair. A luz já não mais o alcançava, e o ambiente claustrofóbico o estava deixando irritado e com dificuldades para respirar. Até que, olhando para baixo, viu uma luz tênue. Não era a luz bruxuleante do fogo, mas uma luz firme, mas ainda assim diferente da luz do sol de alguma forma. Aliviado por finalmente encontrar luz, ele se deixa cair devagar até que sente que seus pés não têm mais apoio. Olha para baixo com dificuldade e percebe que o chão estava próximo o suficiente para que se deixasse cair. Com cuidado, o pequeno gigante vai descendo, apoiado pelos braços e pelas costas, nas paredes próximas, a espada curta já de volta na bainha, e o machado pendendo estranhamente na frente do peito, para evitar machucar as costas.
  Finalmente se irritando com o incômodo machado, ele solta a correia que o segurava e deixa o machado cair, o que faz com que o barulho se repita, graças ao eco, pelo o que Petraack descobriu ser uma estrutura assim que caiu no chão, ao lado de sua preciosa arma. O barulho ainda ecoava pelos corredores distantes, o que fez Petraack se arrepiar com a excitação de uma nova aventura.
  Ele olhou ao redor, abismado com o corredor reto, quadrado, maior do que seus braços abertos, e mesmo sua cabeça tinha alguma distância do teto. Quase o tamanho de dois homens, tanto em largura quanto em altura. O bárbaro não tinha muita certeza de qual seria o chão e o teto, exceto que ele pisava em um e o outro estava sobre sua cabeça, mas não havia diferença estrutural entre os dois. Ambos possuíam um estranho padrão em baixo relevo, como runas, mas não era nada que lhe parecesse feito pelos anões. Pareciam organizadas marcas de garras, esculpidas na pedra com maestria. A luz que ele vira anteriormente, eram as runas que brilhavam com uma luz branca pura, iluminando o lugar como um todo, de forma que ele não compreendia totalmente. Mesmo com a luz, ainda havia uma penumbra, como se a luz branca não fosse forte o suficiente para iluminar tudo.
 Ele estava confuso, pois não se recordava de nenhuma estrutura que houvesse sido feita ou descoberta desde que sua tribo era a sua tribo. O Oráculo havia contado histórias sobre guerras entre os deuses o que havia desertificado o mundo, e que os escolhidos, como aquela tribo, moravam mais perto do coração da batalha. A morte dos deuses havia tornado o deserto instável e muitas coisas estranhas apareciam eventualmente, mas nunca houve nenhuma estrutura, pelo menos não como essa, devolvida pelo Oceano de Areia.
O bárbaro avança, seu fiel machado dourado displicente em uma das mãos. Observava com interesse renovado o local, seguindo adiante até que chega em um ponto onde havia ocorrido um desabamento. Talvez o mesmo que criara a fenda pela qual ele entrou. Em nenhum momento ele pensou em métodos para sair dali. Em alimentos ou água. Estava intrigado pelas estranhas runas em um idioma diferente. Não que ele soubesse ler em seu próprio idioma. Sempre julgou tal coisa desnecessária e somente agora se deparara com a vontade de saber o que havia escrito em uma superfície. Pensou em arrastar o Oráculo até ali para que lhe dissesse o que estava escrito. O que queria dizer. Virando as costas para o desabamento, ele avança na outra direção, eventualmente passando pela fenda pela qual entrara. Seria muito difícil passar por ali novamente.
Petraack sorri seu sorriso feroz e avança, observando atentamente as runas que pareciam mudar conforme avançava. Agora definitivamente pareciam as runas anões, e vários metros de corretor reto e sem declive depois, era uma caligrafia fina que ele nunca tinha visto. Ele hesita um pouco quando os três tipos de letras aparecem em repetições de símbolos que ele não conseguia identificar, a luz passa de branca para amarela e metros depois, para vermelho. Ele não mais via direito, a luz vermelha dificultando sua visão, como se ela iluminasse menos, embora os símbolos fossem mais brilhantes do que os brancos quando observados.
  Ele continua o caminho até que chega em uma grande câmara. Seus olhos se iluminam com o brilho vermelho refletido em ouro. Muito ouro. Muito mais do que todo o ouro que ele já vira em toda a sua vida. Em diversos montes, na forma de moedas, de barras, de cordões e jóias. Armas de aço e ferro e metais que ele não conhecia. Armaduras. Quadros. Tapeçarias. O tesouro de um reino reunido no imenso aposento. Petraack não conseguia ver o teto, as runas se tornavam indistintas conforme avançavam. Via somente que no meio da sala havia algo estranho. Machado na mão, ele se aproxima cauteloso.
 Não exatamente furtivo, pois jamais vira muita necessidade nisso. Quando chega perto, desviando de montes de ouro e jóias maiores do que ele, percebe uma superfície opaca. As runas em seu machado brilham como mil sóis por um momento, o cegando por vários minutos. O machado vibrava em sua mão cada vez mais forte, mas ele mantinha-o seguro.
 Sua mão apertada enquanto as runas começavam a produzir um som que ressoava com a vibração do machado. Cada vez mais agudo, até que ele não mais ouvia o som, mas algo em seu corpo, na forma que o machado vibrava, que o ar vibrava, mostrava que o som estava além de sua capacidade de ouvir. E a superfície opaca racha. O machado para de vibrar e as runas perdem sua cor e seu brilho. Escuridão total.
Ele ouve o barulho de rachaduras se alastrando e um barulho de algo quebrando. Um medo estranho e irracional lhe toma o peito. Sua mão treme pela primeira vez. Ele não entendia o motivo. Nunca teve medo do escuro antes, e não via motivos para ter agora. Estende a mão para frente e a superfície opaca não estava mais lá. Por algum motivo que ele não compreendia, o medo aumentou ainda mais. Nublava seus pensamentos. Lágrimas começaram a correr sem suas ordens. Sua mente não mais comandava o próprio corpo e seus joelhos cederam, indo de encontro ao chão quando sentiu o líquido quente lhe escapar da bexiga.
Um rugido desumano lhe tira a consciência, o medo finalmente lhe entregando a um negrume diferente da simples ausência de luz. Uma inconsciência atormentada, inicialmente, pelo mesmo medo sem motivo e lógica que o desmaiara. Monstros horríveis desfilavam como donos do rugido. Até os pesadelos vão diminuindo de intensidade e ele vai para a inconsciência normal e abençoada.
Quando ele finalmente acorda, sente a luz forte do sol em seu rosto. Sua boca seca como nunca antes. Pega seu cantil feito de couro de algum animal cujo nome não se recordava e bebe o pouco que ainda tinha. Precisava retornar para aldeia. Estava se sentindo fraco, mas sem nenhum sinal daquele medo debilitante. Olha para suas vestes, fétidas pela urina e por coisas piores que medo havia trazido à tona e se desfaz da roupa. Mantém somente suas jóias. Suas braçadeiras, um pesado cordão de ouro e seu machado. Seu fiel machada.
   Ao olhar atentamente para o objeto, percebe que haviam novas runas cravadas nele. E havia uma presença que ele não conseguia identificar prontamente. Como se o machado estivesse dormindo. Por mais estranho que fosse esse pensamento.
 Começa o longo caminho para a aldeia, nu e com o sol brilhando em sua pele negra, mal sentindo o calor que faria outros homens morrer. Depois de meio dia de caminhada ele chega ao local onde deveria estar sua aldeia. Ainda não haviam chegado, o que era estranho, mas ele segue seu caminho, fazendo o caminho inverso para encontrar a aldeia que vagava pelo deserto. A noite havia caído e ele ainda não encontrara nem traço de sua casa. Encontra algo para comer e come cru, do jeito que estava. Espreme água de algumas ervas que encontrou por baixo da areia, coisas que somente os mais treinados conseguiria fazer e segue sem descansar.
   Depois de dois dias encontra o que buscava. Mas não no estado que esperava.
   A areia ainda estava vermelha com o sangue de seus companheiros, mas não havia nenhum corpo. Nenhum corpo reconhecível. Pedaços desencontrados com marcas que ele reconhecia como dentes, mas que nenhum animal possuía tamanho para ter. Faixas da areia estava vitrificadas, como se uma chama gigantes houvesse varrido o local. Ou que uma das raríssimas tempestades de raios houvesse passado e escolhido exatamente a aldeia para ser vitimada. Vai até o local onde ficaria sua própria cabana e encontra tudo revirado. O tecido rasgado para que pudesse ser visto de fora e de cima. E a areia ainda vermelha com o sangue de seus companheiros.
Ele grita de fúria e dor. Mas seu grito é ecoado com outro somente de fúria. Somente depois ele percebe a segunda voz o acompanhando. Olha em volta assustado até que percebe a presença. No machado. E a última coisa que se lembra é pegar no machado e ouvir um sussurro:
             - Desculpe, mas seu corpo é meu. Eu preciso terminar a missão.


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