quarta-feira, 18 de julho de 2012



 Minha mãe sempre me disse que uma mulher seria a minha ruína. Mas, convenhamos, mães dizem muitas coisas e, como todo o bom filho, não ouvia metade. Verdade seja dita, não ouvia quase nada. Isso me torna um filho ruim? Ou me torna um filho normal?
Acordei em uma suite de hotel. De um hotel bom, o que tornava tudo mais estranho. Estava com um misto de sede e fome terrível, mas também uma fraqueza que me lembrava da quantidade de álcool que havia tomado na noite anterior. As memórias estavam nubladas mas estavam lá. Pelo menos eu lembrava de como havia chegado ao quarto. Estava com uma mulher. Uma extremamente bela. Conseguia me recordar do rosto branco e dos cabelos escuros. Dos lábios com um batom extremamente vermelho. Me recordo de tê-la chamado de Branca de Neve.
Passei a noite em uma das boates mais badaladas da cidade. Claro que não paguei a entrada da exclusiva boate, recanto da nata da sociedade carioca. Ninguém que não fosse filho de alguém influente, ou fosse uma mulher muito bonita poderia entrar. Exceto por mim, é claro. Conhecia o segurança, que havia permitido a minha passagem por “ser da casa”. Mesmo quando não conhecia ninguém, sempre dava um jeito de entrar. Adorava me entreter com as filhinhas de papai. Adorava a reação quando descobriam que eu era um zé ninguém. Que mesmo com meu cabelo loiro e olhos azuis, não era o filho de algum empresário estrangeiro. Que mesmo com o meu inglês fluente, era somente alguém que fez um curso e se dedicou. Mas sempre me apresentava como John Smith, filho de um magnata na área de tele-comunicações. Forço o sotaque em algumas palavras mais conhecidas em português e depois me mantenho no inglês. Sempre funciona. Sempre funcionou. Até a Branca de Neve.
 Na primeira volta que eu havia dado, já havia notado a mulher, sozinha em frente ao bar, ignorando investidas dos playboys que a rodeavam. Ela os ignorava como se eles não estivessem lá. Me lembro de acabar sorrindo quando traço um plano. O mais simples de todos, mas que quase sempre funcionava.
Me aproximei sem hesitação, meu jeito de andar transparecendo uma confiança que não possuía pela primeira vez. Nem mesmo a olhei quando encostei do seu lado e pedi um drink. Bebi tranquilamente e sorri para uma mulher próxima, e fiz menção de ir para perto dela. Senti uma mão gelada me segurando e me surpreendi quando vi que era dela. Eu ainda iria trazer a mulher para perto e mostrar que não estava interessado, depois me desfazer da mulher e tentar conversar com ela. Verificar se ela estava bebendo. Mas não cheguei a tanto.
- Por que tantos planos, John Smith? - Sua voz era baixa, mas eu consegui ouvir cada palavra sem dificuldade. Seus olhos encontraram os meus e eu relaxei. De uma forma estranha me sentia seguro, mesmo com uma parte da minha mente gritando para eu me afastar. Mas minha mãe estava certa. Eu era mulherengo demais. Sou. Eu sou mulherengo demais.
 A partir desse ponto, tudo fica nebuloso demais. Eu consigo me lembrar dela me dizendo que sabia que eu não era estrangeiro. Me lembro dela me chamar pelo nome e me dizer o meu endereço. Com CEP e tudo. Eu lembro de ter sentido medo, mas ela era tão linda... Me lembro vagamente de quando ela me levou para fora, a noite já ia alta. Eu tinha lapsos na memória. Devo ter bebido muito, apesar de só lembrar do primeiro drink.
Lembro vagamente de estar tentando dormir no taxi, mas ela não deixava, beijando e mordiscando meu pescoço. Nessa parte, minhas memórias são quase incompreensíveis. Infelizmente não me lembro do sexo, mas do jeito que dormi, deve ter sido sensacional. Afinal, já era noite novamente. Olho o relógio pela primeira vez e ele me mostra que são sete da noite. O sol acabava de se pôr, graças ao horário de verão.
Olho ao redor, um tanto quanto incomodado pela opulência do lugar. Era uma cobertura de algum hotel importante. Bem diferente dos motéis na beira da Dutra nos quais eu ia eventualmente. Um pensamento mesquinho me passa a cabeça, mas tento afastá-lo, apesar de que a ausência da mulher me passar uma impressão muito forte. Minhas roupas estavam ali. Minha carteira também. Poderia ser pior. Percebo pela primeira vez que estou pelado. sinto a confusão na minha mente diminuindo, mas muito lentamente. Não estava com dor de cabeça. Não estava com ressaca, então porque minha mente estava tão nebulosa?
 Levanto da cama deixando o lençol cair. Passo a mão nos olhos, tentando afastar a névoa em minha mente, mas não adianta. Ao baixar a mão percebo que estou com a barba bem feita. Estranho. Eu estava com ela por fazer quando saí. Tinha quase certeza disso. Quase. Caminho até o banheiro, mas não estava com nenhuma necessidade fisiológica. Apenas fome. E sede. Muita fome e muita sede. Minha boca estava seca. Abri a torneira e passei água no rosto, afastando um eventual vestígio de sono, um hábito de anos, exceto que pela primeira vez na vida, eu havia despertado sem sono.             Estava estranhamente letárgico, mas sem sono. Bebo a água da torneira com sofreguidão, apenas para me descobrir alguns segundos depois vomitando-a na privada.
Ergo a cabeça e vejo meu rosto levemente embaçado. Jogo água nos olhos e os esfrego. Nada. A imagem continua embaçada. Olhando com mais atenção, percebo que somente o meu reflexo está diferente. O reflexo das outras coisas está normal. Isso me fez dar um pulo para trás e levar a mão ao peito, olhando abismado para o espelho. Com a outra mão, toco a superfície reflexiva e então percebo. Meu coração. Não mais batia. Não que eu estivesse sentindo, pelo menos.
  Minha respiração se acelera cada vez mais e eu grito, com todo o fôlego que consegui reunir. O espelho mostrava apenas meu reflexo esmaecido e embaçado. Eu parecia tão pálido...
 - Porque tanto pânico, André? Ou prefere John Smith? - A voz doce dela me trouxe novamente à realidade. Não me lembrava de ter sentado num canto. Nem de ter derrubado um móvel. Ou de ter machucado a mão, dias atrás. Digo dias atrás porque minha mão já estava somente com leves cicatrizes. Como se eu houvesse quebrado um espelho com um soco. Minha garganta parecia fechada pela sede, ou fome, ainda não havia conseguido identificar o que era pior. Notei que estava prendendo a respiração, e isso não me causava desconforto nenhum.
  - O que aconteceu comigo? O que você fez? - Minha voz parecia rouca. A secura em minha garganta era atordoante.  
- Você é realmente muito devagar... - Não sei como, mas ela estava sobre mim, passando a mão no meu rosto. Estávamos deitados na cama. - Sua sorte é que você é muito lindo... - E com a unha, faz um corte em seu pulso. O sangue começa a sair, sua cor escura atiçando minha visão como nada antes fez. Seu cheiro fazendo com que meu estômago se revirasse como nenhuma comida fez antes.
Não lutei quando ela encostou o pulso em meus lábios. Não questionei o prazer indescritível que aquilo me proporcionou. Minha mente havia parado. Meu corpo não respondia mais conscientemente. Mais intenso que sexo. Mais forte que qualquer droga que já havia experimentado. Incrível. Indescritível. Realmente indescritível.


0 comentários:

Postar um comentário