O primeiro barulho não parecia ter passado de uma batida na porta. Acordei no meio da noite achando que estava sonhando. O quarto ainda estava escuro e no relógio brilhavam três números quatro. Eram exatamente 4:44 da manhã. Isso devia significar algo, ou talvez não. Escutei mais barulhos, talvez batidas na porta mais desesperadas. Não conseguia pensar de forma coerente. Meus olhos queriam fechar e meu corpo queria relaxar. Fiquei novamente achando que a capacidade que o Alan tinha de conseguir dormir sem perceber nada ao seu redor era irritante. O mundo podia estar acabando e ele estaria dormindo. Melhor pra ele, talvez. Mas eu sempre tive essa ideia de que se o mundo estivesse acabando, eu ia querer acordar e tentar sobreviver.
Andei até a porta e percebi que não tinha ninguém batendo nela. O barulho era longe, mas era repetitivo. Corri até a janela e o que eu vi foi um pesadelo. Tudo lá fora estava destruído. Algumas casas e prédios mais próximos estavam em pé, mas o caos era o suficiente para saber que algo não estava certo. Fumaça pra todos os lados e agora que eu parecia perceber o que estava acontecendo, os gritos das pessoas entraram pelo meu ouvido e se instalaram na minha mente. Eu não conseguia entender o que estava acontecendo, nem me mover. Muito menos pensar. Quando finalmente consegui me forçar a sair de perto da janela, percebi que talvez pudesse ser tarde demais. Eram bombas. Jogadas por alguns aviões que vinham ao longe. Quão rápido eu conseguiria correr, chamar o Alan e achar algum lugar pra me esconder? Eu não achei que conseguiria nem chegar na metade do caminho, mas não me perdoaria se não tentasse. Corri para o quarto aos gritos. Gritei o máximo que pude. Alan apareceu na porta do quarto antes que eu pudesse entrar. Ele não sabia o que estava acontecendo e não parecia ter percebido. Tudo que eu lembro é de ter voado e batido em alguma coisa. Estiquei a mão para tentar segurar Alan, mas seu corpo fora jogado e eu vi o rosto dele de desespero. Vi quando o fogo o envolveu. Vi, nos breves segundos que levaram pra tudo acontecer, a pele dele se descolando. Era como se ele estivesse em câmera lenta. Foi como se não fosse real. A beleza daquilo tudo só não conseguia ser maior que o horror que eu senti quando finalmente os gritos dele pararam.
Eu não sei como sobrevivi. E não sei como não gritei. Tudo aquilo deve ter sido um choque. Eu não lembro de ter sentido dor e nem de perceber que meu corpo estava queimando ou que minha cabeça estava encharcada de sangue. Tudo o que eu podia ver era Alan e o fogo. Alan e o grito. Alan e o segundo que levou pra ele deixar de existir. Um segundo eterno. Esse segundo continua preso na minha mente. É o que eu vejo quando vou dormir, é o que eu sonho, é o que eu vejo quando acordo. Mas eu sobrevivi. Perdi o olho direito e o lado direito do meu rosto não deve ser bonito. Nunca mais me olhei no espelho. Queimei metade do corpo, quebrei as duas pernas e não tenho bons movimentos nos braços. Eu tenho a sensação de que estou queimando, às vezes. Sensação de que não consigo respirar. Mas a maior dor não é a que meu corpo sente. É a dor lá de dentro. Aquele pedaço vazio que sobrou dentro de mim.
Mas o importante agora é que estou bem. Não estou mais na Zona de Perigo. Não sei o que aconteceu nos momentos depois da explosão. Algumas pessoas me resgataram e me levaram para um abrigo subterrâneo. Eu não sabia que esses abrigos existiam. Eu acordei numa cama branca, num lugar com muita luz e silencioso. Eu lembro de ter achado que tudo tinha sido um sonho até tentar levantar da cama. A dor que senti foi uma violência. Não gritei, mas devo ter emitido algum grunhido indefinido. Antes de desmaiar vi pessoas chegando e falando nomes estranhos. Acredito terem sido os médicos e os remédios que deviam me dar. Passei mais um bom tempo entre os pesadelos enquanto dormia e as dores quando acordava. Foram meses assim. Quando finalmente acordei e ouvi os relatos do que tinha acontecido, decidi que ter morrido teria sido melhor.
O mundo tinha virado um caos. Era uma guerra. Guerra. Eu demorei um bom tempo pra entender a dimensão do que acontecia lá fora. No começo achei que fosse algo que passaria rápido. Talvez apenas alguns países envolvidos, mas o que aconteceu foi exatamente o contrário. Apenas a Alemanha não se envolveu, mas isso não impediu os outros de atacarem, mas o país ainda estava lá, até onde sabíamos. O Japão não existia mais. Sumiu. Evaporou. Lembro que os relatos pareciam completamente absurdos. Sem sentido. Nada daquilo parecia real. Era como assistir a um filme.
O lugar que eu estava tinha sido bem construído. Os mais paranóicos, com mania de teoria da conspiração, afirmavam que aqueles lugares tinham sido construídos pelo governo porque eles já sabiam que a guerra ia acontecer e tinham se preparado pra isso, mas não tinham avisado a população. Eu descobri depois que eu era um desses paranóicos. Como poderia ter lugares equipados com salas médicas e dormitórios? Tinha até uma cozinha. Não era confortável. Quando fui para a ala dos quartos, descobri que tinha muita gente sobrevivente. O lugar era organizado e controlado por pessoas do governo, isso todos sabiam. Mas ninguém dizia de onde aquele lugar tinha saído ou pra que havia sido construído. E quando. Essas eram informações muito importantes. Talvez, se o governo tivesse avisado que uma guerra poderia começar a qualquer momento, menos pessoas teriam morrido. É claro que eles diziam que não sabiam de nada e que estavam fazendo o máximo pra proteger a população restante. Mas nada daquilo parecia convincente sem uma explicação. Algumas pessoas achavam que tinha sido tudo improvisado. Mas como improvisar um espaço daquele? O governo não dava explicação alguma e não achava que tinha que dar. Quando eu falo “o governo”, me refiro a um grupo de dez pessoas que aparentemente se resumiam ao presidente e algumas pessoas que eram importantes, não importantes pelo cargo que ocupavam, mas pessoas do governo pré guerra que pareciam ser importantes para o presidente. Mais um motivo pra achar que a teoria de que eles já sabiam da guerra é a verdadeira. Eu ainda pensava mais. Não só eles sabiam da guerra, mas eles também tiveram uma participação pra que ela começasse. Mas isso eu não falava em voz alta. Eu já tinha perdido coisas demais pra me dar ao luxo de falar essas coisas por aí.
Os homens que me resgataram, depois de algum tempo, começaram a ser chamados de Patrulheiros. Eles saiam depois que as coisas se acalmavam pra resgatar quem quer que tivesse sobrevivido e precisasse de ajuda. Não era uma coisa muito fácil e parecia ser arriscado, mas valia a pena. As alas médicas não tinha super equipamentos, mas parecia um lugar no qual você não iria morrer. Os médicos era poucos. Alguns eram sobreviventes que resolveram se juntar, outros ninguém sabia de onde tinham saido. Eles eram amigáveis, mas não gostavam de responder perguntas que não eram relacionadas ao paciente ou a medicina. Suspeito. E só alimentava mais as minhas teorias.
Teorias era o que eu mais tinha naquele momento. Tempo demais, vontade de menos de viver e teorias. E a lembrança insistente de Alan queimando na minha frente. Uma das primeiras noites em que eu estava consciente, foi completamente assustadora. Eu tive pesadelos. Alan gritava por ajuda e por mais que tentasse, não conseguia alcançá-lo. Eu acordei no meio da madrugada pra me deparar com o sentimento aterrador do desespero. Não havia mais Alan. Eu não sabia nem ao certo se eu ainda existia. Num desses pesadelos noturnos foi que eu notei que a gente tinha energia. Estranho, pode parecer. Mas com tudo aquilo que eu estava passando, não notei coisas simples. Como poderíamos ter energia ali embaixo se tudo aquilo fosse realmente improvisado? Não me parecia possível. Talvez fosse só coisa da minha cabeça, mas eu realmente não achava que energia devia fazer parte das nossas vidas. Tudo havia sido destruído nos arredores. E a energia ali parecia estável. Mas quem era eu pra dizer qualquer coisa? A dor me impedia de agir.
O tempo foi passando e a paranóia se instalando. No começo, eu tentei não pensar nessas coisas todas e até achava que os paranóicos deviam parar de achar que tudo estava errado. O pior, é que eu concordava com eles. Desde que eu havia chegado ali, minha mente começou a soltar um alerta. Mas eu não queria admitir que eu pudesse ser daquele jeito. Eu deixei a minha paranóia bem guardada na minha mente. Mas só no começo. Eu observei muitos grupos de perto. Eu queria saber exatamente com que tipo de gente eu tava lidando. Quando finalmente me liberaram, eu tive que usar uma cadeira de rodas por um bom tempo. Eu tive medo de não voltar a andar nunca mais. Achei que nada podia ser pior, até que descobri que não ter um dos olhos pode parecer somente péssimo, mas é o tipo de coisa que faz um individuo pensar se vale mesmo a pena viver. Eu escolhi viver. Ou viver me escolheu. Eu estava com tanta dor e sentindo tanta pena de mim que morrer pareceu ser uma opção muito difícil a ser tomada. Mais fácil ficar lá do jeito que tava do que escolher morrer e ter que fazer alguma coisa a respeito daquilo. Não era preguiça, eu estava dormente, anestesiado, sem qualquer vontade de existir no meio daquele mundo.
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