quinta-feira, 12 de maio de 2016

Entre répteis e felinos

Caro Vhan,
Inspirado por seu felino comportamento, resolvi escrever uma espécie de biografia. Acho estranho que as pessoas ainda se impressionem comigo. Faz alguns anos que me estabilizei em minha posição, mas em todas as reuniões, ainda me olham torto, como se aquele não fosse o meu lugar.
    Eu, como sempre, discordo. Então lembrei que você tinha por hábito ficar escrevendo e rascunhando coisas sempre que tínhamos um tempo livre, o que, estranhamente, era mais comum para você. Reconheço que o estudo da ciência arcana me consome bastante tempo, assim como minhas experiências. Aproveito para informar que o urso passa bem, e que suponho que sua prole saia como pretendíamos. Os cachorros estão muito bem, sendo a quinta geração a nascer com as características desejadas.
    Meu filho mais velho, Aklat, provou-se uma decepção. Acabou morto por um ser infernal. Como punição, eu o enviei para ser treinado na Cavalaria Infernal Arcana. O segundo filho é, também, uma de minhas experiências. Pretendo iniciar uma nova era para meu povo com isso. Um retorno às nossas origens, por assim dizer. O terceiro e quarto estão apenas sendo planejados. Preciso testar o segundo para verificar potenciais problemas no projeto.
    Mas acabei divagando. Minha biografia. Vou escrever como os seus contos sobre nosso tempo de aventuras. Mas não se preocupe. Vou mudar as localizações e uma boa parte do que aconteceu. Assim seus inimigos não poderão encontrar sua amada vila. Ainda vai ficar reconhecível o suficiente para nos trazer lembranças.
    O tempo passou meu amigo. E foi inclemente comigo. Mesmo você deve estar começando a se sentir velho. A agilidade felina minguando. A idade mitigando seus reflexos e entorpecendo sua já turva atenção. E os filhos meu amigo? Quando verei uma ninhada sua?
    Não desapareça. Me visite. A mina de Prata Verdadeira finalmente secou, o que me permitiu expandir e cavar ainda mais. Encontrei vastos depósitos de ônix e grandes veios de prata comum. Os deuses ainda sorriem para mim. Sinto saudades, amigo. E te desejo sorte.

Auk Redscale, o Barão Vermelho
Duque da Cordilheira Espírito da Terra, Senhor da Fortaleza Adamantina, Lorde das Escamas Rubras, Mestre da Sombra, Arquimago do Fogo Negro.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Tosh

    Arthur Mengsk sempre foi o mais inteligente da turma. As aulas nunca ofereceram o desafio apropriado e, talvez por isso, tenha se interessado por jogos tão cedo. Vinha de uma família que tinha algumas posses e por isso conseguiu um computador cedo. Sua curiosidade natural o fez imergir na internet rapidamente. Aprendendo. Logo, seu computador não era bom o suficiente. Juntando o dinheiro da mesada por meses, vendendo trabalhos de colégio para garotos muito mais velhos, ele montou seu próprio computador pela primeira vez. Tinha dez anos.
    Com um computador bom, ele avançava sua imersão. Sua vida era o computador e o que podia oferecer. Na escola, se esquivava dos bullys e se mantinha escondido. Somente era visto quando precisavam dele. Quando alguém precisava de um trabalho muito bom em muito pouco tempo. Não importava a série. Aos poucos, vários alunos da High School já lhe deviam um favor ou outro.
    Com onze anos, brincava de hackear sites considerados perigosos. Na rede ele era Tosh. Na rede não havia idade. Apenas talento. E talento ele tinha. Aos treze, percebeu que seus amigos começavam a desaparecer. Nem mesmo ele encontrava os hackers locais. A rede segura, com criptografia copiada dos militares e depois aprimorada, não parecia tão segura. Vendo que restavam poucos hackers na cidade, ele também sumiu.
    Os estudos não eram problema. Com quinze anos conseguiu mais de 1800 no SAT. Após hackear e trocar a página inicial do MIT por uma dizendo “Tosh passou por aqui” ele foi aceito na faculdade. Dezesseis anos e havia se despedido dos pais. Ido para a faculdade. Em menos de um ano, largou. Ainda não via o desafio. Não via a graça. Era isso o que dizia, mas a verdade era que não tinha a paciência. Detestava projetos longos. Tanto detestava demoras que em um mês regado a café e junk food desenvolveu um novo logaritmo de busca.
    No caminho para casa recebeu uma ligação. Quando entrou em casa, seus pais não acreditaram na notícia. Ele estava milionário.
    Embriagado com o dinheiro, fez uma série de grandes investimentos. Porém o talento que tinha para informática não abrangia a economia. Ou até abrangeria, se tivesse a paciência para esperar. Investiu em empresas de risco. Que acabaram quebrando. Levaram grande parte de seu dinheiro, mas isso não era importante.
    Tinha se acostumado com ter dinheiro. Com ser alguém. E ele nunca tinha recebido tanta atenção feminina quanto quando era rico. Então precisava continuar rico. Depois de muitos anos longe da antiga rede, ele voltou. Não mais uma criança que buscava diversão. 

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Sobre Escorpiões e Fênixes.

    O poderoso Conselheiro Elemental da Terra, Isawa Karyu tinha um casamento feliz. Não exatamente o que seu pai havia pensado. Era algo muito superior. Ele era casado com Bayushi Himeko, filha mais velha do Campeão do Escorpião, o Daymio dos Bayushi. Pelos costumes, Isawa deveria abandonar a Fênix e se unir ao Escorpião, pois Himeko era, sem sombra de dúvidas, de status mais elevado, mas assim como a Fênix não abriu mão dele, ele não abriu mão da Fênix. Himeko por sua vez, a despeito de forte pressão, adotou o nome dos Isawa, para o escândalo de muitos, jamais abandonando completamente o Escorpião, mas dedicando-se à sua família.
    O casal foi feliz por anos, enquanto acompanhavam a ascenção meteórica de Isawa nos ranks dos Shugenja. Por fim, ele foi o primeiro Ishiken na história da Fênix a ocupar o cargo de Conselheiro Elemental de um elemento que não o próprio Vácuo. A Terra era a sua afinidade. Por fim, mostrou-se que Himeko tomou a decisão correta. Ela era a esposa de um dos governantes do clã, enquanto a saúde de seu pai seguia férrea e não dava mostras de esmorecer.
    Foi em uma visita de Hida O-Ushi, Campeão do Carangueijo e marido de uma antiga aliada de Karyu que Himeko percebeu estar grávida. A amiga do casal, esposa de O-Ushi, já era capaz de reconhecer os sintomas com facilidade, tento em vista que ela mesma já estava esperando o quarto filho. Os Kami falaram a Isawa que era de se esperar uma surpresa e que seu filho nasceria dali a sete meses, já que dois já se passavam da gravidez.
    Perto do fim da gravidez, a Conselheira Elemental do Vácuo, amiga próxima de Karyu devido a afinidade de ambos para o Ishiken, chegou em visita e por lá ficou conforme as semanas passavam. Himeko acabou se incomodando, mas a educação foi férrea. Quando finalmente o dia chegou, descobriu que seu marido havia convidado a Conselheira para presidir o parto, já que os espíritos diziam que este seria difícil. Ela entrou em trabalho de parto no exato momento em que o sol começou a se por. Auspicioso, conforme seu marido.
    Exatamente à meia noite seu filho nasceu. Mas o sofrimento não terminou. Exatas doze horas depois, no meio dia, o segundo filho surgiu. Gêmeos. Cada um deles nasceu com pequenas marcas. O mais velho com uma marca no ombro esquerdo que lembrava um escorpião. O mais novo, com uma marca no ombro direito que lembrava um pássaro de asas abertas, uma fênix. De resto, gêmeos idênticos.
A Conselheira, ouvindo os espíritos, disse que cada um deles era ligado a um ancestral. Aos Kami Gêmeos, fundadores do Escorpião e da Fênix. Assim que se recuperou do difícil parto, Himeko escreveu uma longa missiva para seu pai. Takeno nunca soube o que havia escrito, tão pouco seu irmão Nagao.
Desde a mais tenra idade, ambos tinham “amigos” invisíveis. Ambos os descreviam com a mesma aparência, mas para Takeno, seu amigo andava sempre com uma máscara no rosto. As visitas achavam levemente perturbador que o jovem filho de Isawa Karyu cismasse em esconder o rosto de todos, deixando apenas seus olhos visíveis, mesmo com o nobre shugenja alegando jamais ter contado a história dos Kamis para os dois. O outro filho, quando era pequeno, dizia que seu maior desejo era proteger todos os Isawa. Tanto o pai quanto a mãe sabiam o que isso significava. Quando completaram seis anos, seu pai os levou à Corte de Inverno em Kyuden Doji.
Pela primeira vez sua mãe lhe deu um belo robe, mas não nas cores que ele estava habituado. O robe era majoritariamente preto com diversos detalhes vermelhos. No peito, o Mon do Escorpião. Seu irmão usava orgulhosamente as cores do pai. Takeno achou a corte imensamente divertida. Enquanto várias crianças brincavam juntas, ele com frequência se esgueirava e  entreouvia os adultos. Achava divertido. Uma das outras crianças com frequência se esgueirava com ele. Incentivava os outros a brincarem de se esconder, e Takeno sempre se escondia onde podia entreouvir os adultos. Viu sua mãe vestindo as roupas do escorpião e seu pai alheio à corte. Sempre conversando com uma Dragão e um Garça. Tomoko era o nome do garoto e ele não usava as cores de nenhum clã em específico.
Nesse inverno ele conheceu muitas pessoas diferentes, saindo do lado do irmão apenas para observar os outros. Mas ao final, seus pais o reuniram e informaram o que iria mudar. Takeno iria para a terra do Escorpião, ser treinado e criado como um. Nagao seria treinado como um Bushi pela escola Shiba. Ambos choraram. Não queriam se separar. Foi quando Bayushi Himeko olhou nos olhos do filho e disse: “O Escorpião faz o que tem que ser feito. Faz o melhor para o Império, mesmo que seja ruim para si.”
O garoto então parou de chorar e olhou para trás. O homem que sempre o acompanhava, o rosto oculto por uma máscara que mostrava apenas os olhos balançou a cabeça. “Você é um Bayushi. Você é um Escorpião.” Só então o menino aceitou.
Um homem de cabelos grisalhos, bem mais velho que seu pai, ficou responsável por ele. Apenas depois ele descobriu que por trás da máscara estava o seu avô. O Campeão do Escorpião e Daymio dos Bayushi.
Os anos seguintes foram velozes. Assim que chegou, foi testado por quatro homens. Um ator, um shugenja, um cortesão e um guerreiro. Apenas o Shugenja o recusou. O ator disse que poderia usar um rosto daquele, mas que se destacava demais para seu próprio bem. Por dois dias esperou até que seu avô o enviou para o Dojo dos Bushi. Era o mais exigido, o mais cobrado. Nada menos do que a perfeição era aceita. Os anos passavam e Bayushi Takeno trocava cartas com seu irmão. Ao perceber o hábito, seu avô indicou nomes e pediu que ele iniciasse conversações através da escrita.
Seu tio, irmão mais novo da sua mãe, o via como um intruso. Afinal, como Himeko estava com a Fênix, ele seria o próximo Daymio, mas com a presença de Takeno esse assunto era relegado às sombras. Todos os dias Takeno orava e honrava aquele que era seu amigo invisível. Que ele sabia agora ser seu ancestral, o Kami Bayushi. As visões ficaram cada vez mais raras, mas a presença de Bayushi ardia em seu peito. No casamento de seu tio, quando ele tinha catorze anos, conheceu a bela noiva. Yoritomo era sua família. O Louva a Deus, seu antigo clã.
Ela era extremamente simpática e muito bonita. Era bem mais jovem que seu tio viúvo, mas ainda existiam bons anos de diferença entre os dois. Isso não impediu Takeno de rir e usar sua perigosa aparência para encantar aqueles ao seu redor. Afinal, ele sempre se mostrava mais honrado do que a média, o que era bem visto entre os outros clãs. Ele ainda conseguia imitar com precisão a maneira honrada da Fênix.
Na semana seguinte à noite de núpcias, com seu tio longe nas terras do Carangueijo, a proximidade com sua nova tia aumentava cada vez mais, até que na noite anterior à chegada de seu tio, eles consumaram sua atração numa noite selvagem.
Pouco tempo depois seu tio anunciava a gravidez da esposa, radiante. Takeno apenas sorria, embora sentisse a garra gelada do medo em seu peito. Procurou se afastar o máximo que o decoro permitia, mas percebeu que a jovem Yoritomo não queria distância. Foi apenas quando as pretendentes ao belo neto dos Bayushi começaram subitamente a rarear que ele percebeu que havia algo errado.
Quando o filho da jovem Yoritomo nasceu, seu avô o chamou para ver a criança. A garra gelada do medo estraçalhou seu coração quando ele viu no ombro da criança um escorpião. Talvez estranhando o comportamento do neto, o idoso Bayushi disse que um verdadeiro Bayushi eventualmente nascia com um escorpião gravado na pele.
Mas Takeno sabia a verdade.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Remanescentes

        O primeiro barulho não parecia ter passado de uma batida na porta. Acordei no meio da noite achando que estava sonhando. O quarto ainda estava escuro e no relógio brilhavam três números quatro. Eram exatamente 4:44 da manhã. Isso devia significar algo, ou talvez não. Escutei mais barulhos, talvez batidas na porta mais desesperadas. Não conseguia pensar de forma coerente. Meus olhos queriam fechar e meu corpo queria relaxar. Fiquei novamente achando que a capacidade que o Alan tinha de conseguir dormir sem perceber nada ao seu redor era irritante. O mundo podia estar acabando e ele estaria dormindo. Melhor pra ele, talvez. Mas eu sempre tive essa ideia de que se o mundo estivesse acabando, eu ia querer acordar e tentar sobreviver.
        Andei até a porta e percebi que não tinha ninguém batendo nela. O barulho era longe, mas era repetitivo. Corri até a janela e o que eu vi foi um pesadelo. Tudo lá fora estava destruído. Algumas casas e prédios mais próximos estavam em pé, mas o caos era o suficiente para saber que algo não estava certo. Fumaça pra todos os lados e agora que eu parecia perceber o que estava acontecendo, os gritos das pessoas entraram pelo meu ouvido e se instalaram na minha mente. Eu não conseguia entender o que estava acontecendo, nem me mover. Muito menos pensar. Quando finalmente consegui me forçar a sair de perto da janela, percebi que talvez pudesse ser tarde demais. Eram bombas. Jogadas por alguns aviões que vinham ao longe. Quão rápido eu conseguiria correr, chamar o Alan e achar algum lugar pra me esconder? Eu não achei que conseguiria nem chegar na metade do caminho, mas não me perdoaria se não tentasse. Corri para o quarto aos gritos. Gritei o máximo que pude. Alan apareceu na porta do quarto antes que eu pudesse entrar. Ele não sabia o que estava acontecendo e não parecia ter percebido. Tudo que eu lembro é de ter voado e batido em alguma coisa. Estiquei a mão para tentar segurar Alan, mas seu corpo fora jogado e eu vi o rosto dele de desespero. Vi quando o fogo o envolveu. Vi, nos breves segundos que levaram pra tudo acontecer, a pele dele se descolando. Era como se ele estivesse em câmera lenta. Foi como se não fosse real. A beleza daquilo tudo só não conseguia ser maior que o horror que eu senti quando finalmente os gritos dele pararam.
        Eu não sei como sobrevivi. E não sei como não gritei. Tudo aquilo deve ter sido um choque. Eu não lembro de ter sentido dor e nem de perceber que meu corpo estava queimando ou que minha cabeça estava encharcada de sangue. Tudo o que eu podia ver era Alan e o fogo. Alan e o grito. Alan e o segundo que levou pra ele deixar de existir. Um segundo eterno. Esse segundo continua preso na minha mente. É o que eu vejo quando vou dormir, é o que eu sonho, é o que eu vejo quando acordo. Mas eu sobrevivi. Perdi o olho direito e o lado direito do meu rosto não deve ser bonito. Nunca mais me olhei no espelho. Queimei metade do corpo, quebrei as duas pernas e não tenho bons movimentos nos braços. Eu tenho a sensação de que estou queimando, às vezes. Sensação de que não consigo respirar. Mas a maior dor não é a que meu corpo sente. É a dor lá de dentro. Aquele pedaço vazio que sobrou dentro de mim. 
        Mas o importante agora é que estou bem. Não estou mais na Zona de Perigo. Não sei o que aconteceu nos momentos depois da explosão. Algumas pessoas me resgataram e me levaram para um abrigo subterrâneo. Eu não sabia que esses abrigos existiam. Eu acordei numa cama branca, num lugar com muita luz e silencioso. Eu lembro de ter achado que tudo tinha sido um sonho até tentar levantar da cama. A dor que senti foi uma violência. Não gritei, mas devo ter emitido algum grunhido indefinido. Antes de desmaiar vi pessoas chegando e falando nomes estranhos. Acredito terem sido os médicos e os remédios que deviam me dar. Passei mais um bom tempo entre os pesadelos enquanto dormia e as dores quando acordava. Foram meses assim. Quando finalmente acordei e ouvi os relatos do que tinha acontecido, decidi que ter morrido teria sido melhor.
        O mundo tinha virado um caos. Era uma guerra. Guerra. Eu demorei um bom tempo pra entender a dimensão do que acontecia lá fora. No começo achei que fosse algo que passaria rápido. Talvez apenas alguns países envolvidos, mas o que aconteceu foi exatamente o contrário. Apenas a Alemanha não se envolveu, mas isso não impediu os outros de atacarem, mas o país ainda estava lá, até onde sabíamos. O Japão não existia mais. Sumiu. Evaporou. Lembro que os relatos pareciam completamente absurdos. Sem sentido. Nada daquilo parecia real. Era como assistir a um filme.
        O lugar que eu estava tinha sido bem construído. Os mais paranóicos, com mania de teoria da conspiração, afirmavam que aqueles lugares tinham sido construídos pelo governo porque eles já sabiam que a guerra ia acontecer e tinham se preparado pra isso, mas não tinham avisado a população. Eu descobri depois que eu era um desses paranóicos. Como poderia ter lugares equipados com salas médicas e dormitórios? Tinha até uma cozinha. Não era confortável. Quando fui para a ala dos quartos, descobri que tinha muita gente sobrevivente. O lugar era organizado e controlado por pessoas do governo, isso todos sabiam. Mas ninguém dizia de onde aquele lugar tinha saído ou pra que havia sido construído. E quando. Essas eram informações muito importantes. Talvez, se o governo tivesse avisado que uma guerra poderia começar a qualquer momento, menos pessoas teriam morrido. É claro que eles diziam que não sabiam de nada e que estavam fazendo o máximo pra proteger a população restante. Mas nada daquilo parecia convincente sem uma explicação. Algumas pessoas achavam que tinha sido tudo improvisado. Mas como improvisar um espaço daquele? O governo não dava explicação alguma e não achava que tinha que dar. Quando eu falo “o governo”, me refiro a um grupo de dez pessoas que aparentemente se resumiam ao presidente e algumas pessoas que eram importantes, não importantes pelo cargo que ocupavam, mas pessoas do governo pré guerra que pareciam ser importantes para o presidente. Mais um motivo pra achar que a teoria de que eles já sabiam da guerra é a verdadeira. Eu ainda pensava mais. Não só eles sabiam da guerra, mas eles também tiveram uma participação pra que ela começasse. Mas isso eu não falava em voz alta. Eu já tinha perdido coisas demais pra me dar ao luxo de falar essas coisas por aí.
        Os homens que me resgataram, depois de algum tempo, começaram a ser chamados de Patrulheiros. Eles saiam depois que as coisas se acalmavam pra resgatar quem quer que tivesse sobrevivido e precisasse de ajuda. Não era uma coisa muito fácil e parecia ser arriscado, mas valia a pena. As alas médicas não tinha super equipamentos, mas parecia um lugar no qual você não iria morrer. Os médicos era poucos. Alguns eram sobreviventes que resolveram se juntar, outros ninguém sabia de onde tinham saido. Eles eram amigáveis, mas não gostavam de responder perguntas que não eram relacionadas ao paciente ou a medicina. Suspeito. E só alimentava mais as minhas teorias.
        Teorias era o que eu mais tinha naquele momento. Tempo demais, vontade de menos de viver e teorias. E a lembrança insistente de Alan queimando na minha frente. Uma das primeiras noites em que eu estava consciente, foi completamente assustadora. Eu tive pesadelos. Alan gritava por ajuda e por mais que tentasse, não conseguia alcançá-lo. Eu acordei no meio da madrugada pra me deparar com o sentimento aterrador do desespero. Não havia mais Alan. Eu não sabia nem ao certo se eu ainda existia. Num desses pesadelos noturnos foi que eu notei que a gente tinha energia. Estranho, pode parecer. Mas com tudo aquilo que eu estava passando, não notei coisas simples. Como poderíamos ter energia ali embaixo se tudo aquilo fosse realmente improvisado? Não me parecia possível. Talvez fosse só coisa da minha cabeça, mas eu realmente não achava que energia devia fazer parte das nossas vidas. Tudo havia sido destruído nos arredores. E a energia ali parecia estável. Mas quem era eu pra dizer qualquer coisa? A dor me impedia de agir.
O tempo foi passando e a paranóia se instalando. No começo, eu tentei não pensar nessas coisas todas e até achava que os paranóicos deviam parar de achar que tudo estava errado. O pior, é que eu concordava com eles. Desde que eu havia chegado ali, minha mente começou a soltar um alerta. Mas eu não queria admitir que eu pudesse ser daquele jeito. Eu deixei a minha paranóia bem guardada na minha mente. Mas só no começo. Eu observei muitos grupos de perto. Eu queria saber exatamente com que tipo de gente eu tava lidando. Quando finalmente me liberaram, eu tive que usar uma cadeira de rodas por um bom tempo. Eu tive medo de não voltar a andar nunca mais. Achei que nada podia ser pior, até que descobri que não ter um dos olhos pode parecer somente péssimo, mas é o tipo de coisa que faz um individuo pensar se vale mesmo a pena viver. Eu escolhi viver. Ou viver me escolheu. Eu estava com tanta dor e sentindo tanta pena de mim que morrer pareceu ser uma opção muito difícil a ser tomada. Mais fácil ficar lá do jeito que tava do que escolher morrer e ter que fazer alguma coisa a respeito daquilo. Não era preguiça, eu estava dormente, anestesiado, sem qualquer vontade de existir no meio daquele mundo.

terça-feira, 19 de maio de 2015

Apenas mais um conto de amor

Sob a luz das estrelas ele caminhava, em paz. A lua estava oculta, em sua fase nova, nenhuma fatia dela no céu. E mesmo assim ele caminhava. Pelos piores locais da cidade. Ouvia o vento e os barulhos da cidade morrendo ao fundo. Caminhava para o escuro onde o poder do estado raramente chegava. Andou por muitos minutos, talvez algumas horas. A rua sob seus pés não mais via asfalto, apenas barro. As casas lentamente ficavam menores e mais simples. As pessoas não mais andavam nas ruas. O mato se tornava mais presente. As casas rareavam.
Até que ele a viu. Caminhava sorrateira e veloz, evitando chamar a atenção e exatamente por isso ele a viu. Seus lábios pálidos formaram um sorriso sincero. Felicidade. Oculto nas sombras crescentes e acostumado a isso, ele a seguia. Ela, decidida, sempre olhava em frente. Caminhando rápido. Quase correndo. Ao longe, seu objetivo se avistava e instintivamente ela diminuiu o passo. Segura. Feliz.
Passou pelo pequeno portão e foi até sua casa, uma luz se acendeu. Ele apenas observava. Observava a sombra dela brincando através da delicada cortina. Acompanhava enquanto a sombra se movia. Assustou-se quando a sombra sumiu com o apagar das luzes. Em outro ponto, pouco depois, outra luz se acende e ele ouve o barulho de água. Estava perto. Muito perto. O pequeno portão jazia distante. Transposto. Ele respirava devagar, se movia devagar, pensava devagar. A água para de cair e novamente a luz se apaga. Já preparado, não se assusta dessa vez, ele ouve os passos leves caminhando para outro cômodo. Vê uma janela se abrindo e se encolhe nas sombras. O cabelo longo e alisado fazia um belo complemento à pele muito negra. Os olhos escuros vararam a noite. Os olhos se fecham enquanto os lábios murmuram uma oração para afastar o mal.
Ele sorri, oculto nas sombras. Linda. Linda. Linda. Quase perfeita. Seu coração doía em seu peito enquanto a observava, o medo de que o barulho de suas batidas pudesse revelar sua posição. Mas foi a sua oração a ser ouvida. As estrelas se moviam, mas ainda faltavam horas para a luz do sol surgir. Ele aguarda, pacientemente. Até que entra, pulando para a janela. Uma surpresa para seu novo amor. Com um lenço amarra cuidadosamente um braço dela na cama.
Assustada, ela acorda. Ela grita. Mas ela morava distante demais dos outros. Longe demais. Ele segura o braço que buscava seu rosto, a mão crispada usando as unhas como garras. Mesmo assim ela era linda. Uma beleza selvagem. Ela era dona de uma beleza interior que precisava ser exteriorizada. Precisava conhecer o frescor da noite. Precisava conhecer a luz. Não podia mais ficar presa dentro dela. Ela grita novamente quando a faca aparece. A mão livre busca o simples lenço que a prendia. Mas o nó era dos melhores. Palavra de escoteiro. Nó de marinheiro.
A luz mínima que vinha de fora, luz das estrelas, afinal, ele era um homem romântico, rebrilhou levemente na faca, sem conseguir iluminar a escuridão e as sombras. Mas ela iluminava a sua escuridão. Ele não conseguiu ver quando o primeiro esguicho o atingiu. Apenas sentiu seu calor. Estava escuro demais. Ela gritava. Ele gemeu de prazer quando sentiu sua faca novamente rompendo a suave pele negra. Ela gritava. Era música para seus ouvidos. Ela gritava e gritava.
Ele continuou seu serviço apaixonado, sentindo os gritos ficando mais fracos. A resistência diminuindo. Até que toda a beleza estava para fora. Ele não podia ver direito. Não conseguia ver o sangue, tão negro quanto a pele dela. Ele não conseguia ver. Mas podia sentir.
E por fim, simplesmente chorou. Ele não era digno de tanta beleza. De tanto cuidado e de tanto amor.

Alexia

O Mundo onde Destino os havia largado era primitivo, para dizer o mínimo. Havia tronos. Cada um deles simples de uma forma particular. Destino havia se sentado no centro. Seus aspectos definidos do início. Alexia podia ver a magia com seus olhos verdes. Podia sentir o poder. Inspirou profundamente e ergueu a mão. Sua vida a definindo. Era um momento de mudança. Invejou a velocidade de Ayira. Como se não houvesse nenhuma dúvida em seu coração, ela se sentou em um dos tronos, um dos dois mais distantes do Destino.
Seu trono se transformava. Perdia a simplicidade. Sua própria aparência se modificava enquanto o trono se retorcia em madeira viva, crescia sem controle, livre. Ela já era uma Ninfa. Já era uma fada. Os espinhos argênteos que brotavam de seu retorcido trono mostravam seu domínio sobre elas.
A mão estendida de Alexia se fecha sob o domínio da Magia. Esse sempre fora seu diferencial. Sangue e morte eram um domínio de todos, mas apenas ela conhecia a magia. Sentia seu poder crescendo.
O próximo foi Krieger e, como filho do Deus da Guerra, não tinha como escolher diferente. Ele caminhou, resoluto em direção a um trono, do lado esquerdo de Destino. Quando ele se sentou, o trono mudou. Lâminas e pontas, farpas e sangue. Metal. Sua aparência cheia de cicatrizes sendo coberta por uma pesada armadura negra. Cravos surgiam e sua imensa espada crescia ainda mais, infundida com a própria essência da violência. Sua musculatura já inchada, cresce ainda mais, a humanidade de sua aparência se diluindo em puro poderio físico.
O medo roça a mente de Alexia quando ela se percebe sozinha. Duuf estava sentado, mas não possuía um trono. Estava sentado sobre uma nuvem tempestuosa. Ele seria o Deus dos Dragões, assim como seu pai o era. Ela via o próprio tempo se dobrando, conforme percebia Duuf como um Grande Ancião Dracônico e como um simples filhote, recém saído do ovo. Todos haviam se sentado. Cada um honrando o próprio pai com suas escolhas. Filhos diletos de pais longínquos.
Mas ela não tinha esse direito. Não poderia escolher o acento de Destino. Ela mesma nunca acreditou nisso e seu próprio pai, o próprio Destino, manipulava e tramava, mudando sua própria sorte. Ela não teria essa facilidade. Em suas mãos, tinha o domínio da magia. Isso sempre fora dela. Não mudaria agora. Sua face não traía seus pensamentos. Sua aura de confiança parecia mostrar que ela havia deliberadamente deixado todos escolherem seus aspectos antes de se sentar no seu lugar de direito: à direita de Destino. Ironicamente, como se esse fosse o seu destino.
Ao se sentar, seu próprio trono cintila. Ela percebe o influxo de poder. Conforme seus olhos se fecham e os nós de seus dedos se tornam brancos ao apertar os braços do trono ela sente a infinidade de possibilidades. Um aliado próximo de seu trono vem com rapidez. Junto à Magia, ela se torna Deusa do Conhecimento. Esse era seu lado mais elevado. Porém seu lado sombrio cobra seu preço e ela percebe a escuridão se aproximando. Sente as presas novamente surgindo e, quando abre os olhos, estes refletem a imensidão estrelada de um céu desconhecido. A Noite era novamente seu domínio. Sorri ao se lembrar das longas viagens em Buracos Portáteis. Sorri ainda mais quando lembra das rápidas viagens cruzando a imensidão continental em seu teleporte sombrio. Sente sua pele se enrijecendo quando se lembra das desagradáveis aventuras ao relento. Ela era uma mulher das Cidades. A Deusa das Cidades. E junto com elas, do Comércio. Já podia imaginar o mundo cercado e entrecortado por imensas rotas ligando uma cidade à outra. Sorri, sentindo-se completa. Ela abre seus olhos estrelados. Nenhum de seus amigos tinha mantido exatamente a própria aparência. Mas ela… Sem dúvida ela foi quem se manteve mais próxima.
Ayira estava com um aspecto muito mais selvagem do que jamais possuiu. Ela poderia lhe causar problemas. Duuf parecia monstruoso e ausente. Estranho. Krieger tinha em seus olhos um brilho que antes o possuía apenas nos mais sangrentos embates. Todos seriam problemas. Ela entendia agora o Destino. Entendia sua carga.
Destino, por sua vez, apenas desaparece. Ele havia conseguido o que desejava. Era um Overgod. Um Deus Supremo. Apesar da criação não ser dele. Alexia é a primeira a se levantar do trono. O Conhecimento inflando sua mente. Ela simplesmente sabia tudo o que as pessoas desse plano sabiam. Cada grande segredo. Cada pequena intriga. Sua mente se expandia. Poucas cidades no plano. Uma única lua. Isso iria mudar. Sua mente busca mais conhecimento. Ela abre seus olhos estrelados. A Noite eram seus olhos. As estrelas, suas representantes. A Lua… Não. A Luz não era dela. Ela sentia uma pequena presença divina. Evanescendo. Os deuses estavam mortos, mas alguns de seus símbolos se mantinham. A Lua e o Sol eram alguns deles. Algumas pequenas cidadelas.
Isso seria resolvido. Ela desaparece da sala. Imergiu na noite. Sumiu no céu noturno. Ela era o céu noturno. Era hora de demonstrar a esse povo o que era realmente um deus. Podia começar a sentir a presença de seus antigos aliados. Tinha certeza de que seu plano iria chamar a atenção.
Alexia não mais estava na sala dos tronos. Ela era a noite. Ela era a magia. E misturando os dois, a lua some do céu. O mar é o primeiro a sentir a mudança, subindo para a terra e devastando as cidades costeiras. Antes que ele avançasse demais uma nova lua surgiu. Menor do que a outra, mas ainda assim, refreando o mar. E logo depois, surgiu outra. E outra. E outra. Até que oito luas estivesse nos céu. Cada uma com uma cor. Cada uma com uma regência. As oito escolas de magia. Advinhação era branca. Necromancia era negra. E cada lua tinha uma coloração. Cada lua tinha uma Escola de Magia. Porque a Deusa da Noite era a Mestra da Magia e seus domínios eram fortes. Ela vê o mar se arrumando, se organizando. As correntes marítimas partidas, mas novamente se formando. Diferentes. Caóticas. Traiçoeiras. E então ela se lembra. E ao se lembrar, ele surge.
Madeira Negra e Ossos de Dragão. Seu navio. Seu pirata. Para ele, o domínio do mar. E em sua mente, a presença de Alexia. O Deus do Mar era seu pirata e sabia que o era por concessão de Alexia e, em última instância, de Destino. Alexia pediu para que controlasse o pior do mar, mas que era seu domínio e ela não pretendia se envolver. Ela sabia, como Deusa do Conhecimento, que as luas tornariam o mar violento e caótico. Com oito forças gravitacionais puxando o mar em diferentes direções. Errático e perigoso. Mas agora isso não era problema seu. Sentiu quando seus aliados começaram seus próprios projetos, sentiu, como Deusa das Cidades que Ayira havia depositado sua cidade no que viria a ser o Centro do Mundo. Alexia influenciava o povo para que desenvolvessem estradas e comércio. E a cidade de Ayira era o coração. Alexia era reverenciada por uma miríade de povos. Os apaixonados a buscavam pela noite. Os sábios pelo conhecimento. E os magos por seu poder. Via o culto dos outros deuses crescendo. Pegou então seus oito primeiros sacerdotes e os elevou. Mais fracos do que seu Pirata, mas cada um deles um deus. Cada um deles uma Escola. E os enviou para incentivarem a magia.
Para seu mais fiel seguidor, seu clérigo, ela o elevou a seu representante direto. Foi seu sumosacerdote por todo o período da sua vida. Quando morreu, ela o envolveu na noite e o elevou. Ele era o Deus da Sombra, divindade dos ladrões e o braço de Alexia no submundo.
Logo após a elevação de seu clérigo, sentiu os olhos fieis de seu cavaleiro. Comportamento exemplar. Fiel até o fim. Mas em sua memória, um episódio se marcava com garras de ferro. Então, ele também foi elevado. Ele foi o Primeiro Vampiro. Pai dos mortos vivos, e fez seus filhos se devotarem ao avanço da civilização, à sua proteção. E criou o costume de se animar os corpos dos mortos para usar como tropas de choque e mão de obra. Deixando os vivos para assuntos da mente. Ela sentia que ele não ficara feliz, mas o vampirismo mudou seu pensamento com o passar dos anos. Ele viu o que era bom.
Viu quando a magia foi usada em guerras. Viu quando cidades foram citiadas para que crescessem depois. Viu quando o comércio crescia com a caça dos dragões e as diversas batalhas. Viu a cidade avançar sobre o selvagem e a raiva de Ayira. Mas fora ela a trazer a Capital. No seu tempo livre caçou sistemativamente todos os sacerdotes dos antigos deuses. Achou os cadáveres dos deuses que possuíam seus aspectos e os absorveu, tornando-os parte de si. Viu outros deuses menores surgindo, patrocinados por seus antigos aliados. E viu o que era bom. Seu domínio era seguro e constante. Eras se passavam por seus olhos estrelados. E ela sabia tudo o que ocorria sob as luas e sob as estrelas. Porque seu era o domínio da noite e do conhecimento. Ela era adorada entre todas as raças e se sentia segura, pois não tinha escolhidos e nem foco em alguma espécie.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Um pedido de ajuda


                Eu sei que ninguém vai acreditar nisso. Eu mesmo quase não acredito. Assim, da boca para fora, muita gente diz que acredita... Mas eu percebi os olhares de condescendência que me lançam quando eu conto isso. Exceto por alguns malucos na internet que tentavam até marcar encontros comigo para procurar eventuais marcas ou cicatrizes. Mesmo quando eu afirmava não ter marca nenhuma. Fanáticos. Eu estava muito bem servido: ou me achavam maluco, ou os malucos me achavam são. Bom... Eu não deveria julgar eles. Estou fazendo exatamente o que os outros fazem comigo. Vai que algum deles é uma pessoa equilibrada? Vai que eu só estou com medo de tudo o que eu vi? Eu pesquisei na internet e vi que a maioria das pessoas não se lembra quando acontece algo do gênero... Mas eu me lembro. Lembro de tudo.
                Estava eu andando de noite, voltando para a Ilha do Governador. Eu sabia que era distante, mas minha moto havia quebrado. Deixei ela na casa de um amigo e vim andando mesmo, a despeito da insistência para que eu dormisse lá. O caminho de Tubiacanga até a Ilha era longo. Porra, Tubiacanga ficava na Ilha, mas era afastado. Era a nossa pequena área rural. A gente sempre brincava falando que ficava no Acre, em Atlântida ou em Lemúria... Nos lugares esquecidos por Deus e o mundo. A gente falava que eles eram isolados assim como o resto do Rio falava que a Ilha era isolada. A última kombi já tinha ido, então ou eu ficava lá ou andava. Andava bastante. Como já disse eu resolvi andar. Desculpem eu ficar me repetindo. Minha cabeça não anda legal desde aquele dia.
                Eu estava andando na estrada de terra que levava para as Canárias. Mato de um lado, mato do outro. Estava escuro porque era lua nova. Ou era minguante. Não lembro direito. Só sei que estava muito pequena. Eu já estava andando há mais de uma hora, resmungando sobre qualquer que fosse o motivo que tinha levado o pai do meu amigo a levar o carro com ele. Até que uma luz forte começou a aparecer. Eu achei que fosse um carro. Até esperava por uma carona, já que a luz parecia estar vindo de trás. Vai que o Francisco conseguiu o carro do vizinho emprestado? Francisco é o nome do meu amigo...
                Eventualmente eu olhei para trás, porque não estava ouvindo barulho de carro, mas não tinha nada diretamente atrás de mim. Mas tinha alguma coisa voando. Ela planava na verdade. Só com uma luz branca me iluminando. Eu não consegui ver direito como era, porque a luz tampava a minha visão. Mas eu vi alguns reflexos dourados quando a coisa se moveu para cima de mim. Eu estava no meio de um círculo de luz. Meu coração estava disparado. Eu sempre disse que acreditava em vida fora da Terra, mas nunca acreditei que fosse ver um dia. Nunca levei muito a sério as histórias sobre abduções e tal. Minha boca estava seca e eu comecei a correr. De início eu corri pela estrada mesmo, desesperado, mas por mais que o chão se movesse sob os meus pés, eu continuava no centro exato do círculo de luz. Eu tentava correr mais rápido, mas não adiantava. Nunca fui um bom atleta. Eu até caminho bem, se tenho que caminhar, mas correr e fazer atividades físicas não é a minha praia. Estranhamente o que mais me incomodava é que aquilo não fazia barulho nenhum. Meus pés faziam. Minha respiração pesada fazia. Mas aquilo não, então não era um helicóptero ou um avião qualquer. Eu corri até não aguentar mais, o que não era muita coisa, é bem verdade. Até que cai.
                Quando eu cai, eu caí fora da estradinha de terra. Caí de um barranco, no mato. Por um segundo, apenas um segundo, a luz não me alcançou. O mato me protegeu. Minhas mãos doíam por ter tentado aparar a queda. Minhas pernas doíam por causa do esforço e minha barriga doía por causa da corrida. Eu via a luz me procurando, o vulto imenso e escuro tampando as estrelas, com um facho de luz varrendo o mato. Eu fiquei bem quietinho no mato onde eu havia caído. Acho que estava chorando, não tenho muita certeza. Até que eu senti... Alguma coisa... Não sei direito o que é. Era quase como se fosse uma pressão na minha cabeça. Mas não na minha cabeça mesmo. No meu cérebro. Na minha mente. E então eu desmaiei.
                Quando eu acordei, eu não estava com dor nenhuma. Estava em uma cama de metal duro. Parecia aquelas de hospital, só que sem o colchão e as grades. Uma chapa de metal. Eu pulei fora da cama sem demora. Minhas roupas ainda estavam rasgadas onde a queda havia rasgado, mas não estava machucado. Eu olhei ao redor e vi o céu estrelado por uma janela. Tinha uma... Bom, eu achava que era uma porta. Só que circular e com desenhos gravados. Os mesmos desenhos seguiam pela parede. Pareciam os desenhos que eu vi na parte egípcia do museu, só que eram diferentes. Mais detalhados, eu acho. Eu cai no chão de susto quando vi que a chapa de ferro onde eu estava deitado estava flutuando no ar. Passei a mão em baixo dela, de todas as formas que consegui pensar e não senti nada. Quando eu empurrei ela, ela foi até a parede, como se nada estivesse segurando e bateu na parede, fazendo um barulho alto de metal contra metal, mas não caiu. Continuou flutuando exatamente na mesma altura.
                Agora, eu acho que o que fiz em seguida foi um erro, mas na hora não me ocorreu o que poderia estar acontecendo de verdade. Eu fui na janela. Eu vi um... Planeta. Eu acho. Só que verde. Tipo o verde que a gente vê na Amazônia, nas fotos da Nasa. Um verde que devia ser floresta. Mas eu não vi água. Não vi o azul da frase do astronauta lá. Aquele que disse “A Terra é azul”. Esse planeta era verde. Todo verde. Eu tomei um susto quanto tocaram no meu ombro e tomei um susto ainda maior quando olhei para ver o que era.
                Tinha uma... Coisa... Humanoide  já que tinha dois braços e duas pernas. Mas era mais alto do que eu. Tinha pelo menos dois metros e meio, quando eu paro para pensar. Não tinha nariz nem boca na cabeça. A cabeça era um tanto quanto alongada. Os olhos eram azuis e de um formato estranho. Os olhos brilhavam na penumbra do quarto. Eu tinha a impressão de que saía fumaça dos olhos. A pele dele era cinzenta e, quando eu estiquei a mão para tocar, fria. Ele estava vestindo o que parecia ser uma armadura dourada. Os joelhos dobravam para trás, como o calcanhar dos animais. Ele usava alguma coisa como sapato. Usava uma capa branca. Usava alguma coisa nas mãos, que, eu percebi logo depois. Tinham só três dedos. Um polegar e dois dedos alongados e finos. Da grossura do meu dedo médio, eu acho. Mas bem mais comprido.
                “Não era para você ter acordado”. Eu senti aquela pressão na cabeça de novo. Era a minha voz na minha cabeça, mas o pensamento não era meu. Era estranho. Muito estranho. Tudo estava sendo estranho.
                - Onde eu estou? – Eu perguntei para a criatura.
                “Não adianta eu lhe dizer se você não tem capacidade de compreender.” Era a minha voz de novo. Como se eu mesmo estivesse pensando naquilo. Minha cabeça tinha começado a doer. “Durma. Está tudo bem. Confie em mim.” Eu tenho certeza que cheguei a abrir a boca para dizer que eu não ia confiar em um ET que havia me sequestrado, mas eu apaguei.
                Quando acordei, estava em casa. Minha casa estava um nojo. Como se a empregada não viesse há muito tempo, o que era um absurdo, porque ela havia ido lá há dois dias. Meu celular estava do meu lado com a bateria descarregada. Eu fui ligar o computador assim que me dei conta de onde estava, mas ele não ligou. Tentei ascender a luz, mas também estava fora. Excelente hora para uma queda de luz. Fui até a cozinha e abri a geladeira. Vazia. Merda. Tinha certeza que ainda tinha alguma coisa para comer. Peguei a minha chave e saí do apartamento onde eu morava, na Portuguesa. Pretendia dar uma corrida na padaria para comprar alguma coisa para comer. Estava morrendo de fome e, com uma verificada rápida, vi que pelo menos o ET não tinha me roubado. Seria o cúmulo ser assaltado por um ser de outro planeta.
                Assim que pus o pé na rua, um garotinho, filho da minha vizinha (não a que saía comigo, a outra) começou a gritar.
                - Mãe! Ele voltou! – Criança estúpida. Eu ignoro ele e vou na padaria. Acabo almoçando, porque parece que eu dormi demais. Quando eu volto para casa, minha mãe estava na porta, chorando. Quando ela me viu, saiu correndo e me abraçou. Eu não estava entendendo nada.
                Depois que todo mundo se acalmou, eles me falaram que eu estava sumido há seis meses, o que era um absurdo. No máximo um dia. Perguntaram onde eu estava e eu respondi. Obviamente não me levaram a sério. Tive que ir na polícia prestar esclarecimentos sobre o meu sumiço, mas eles também não acreditaram em mim. Acabaram falando para a minha mãe que eu tive um colapso nervoso devido ao estresse. Ninguém acredita em mim. Conforme as semanas passaram, eu vi de relance, na loja de jogos do Ilha Plaza o ET. Quando eu entrei e perguntei, ele me disse que era um Protoss. Comprei o jogo. Star Craft II era o nome. Fiquei completamente abismado com a semelhança. Havia um ou outro detalhe diferente, mas a essência era a mesma. Quando eu falei para a minha mãe, ela me mandou voltar para o psicólogo. Desnecessário dizer que ele também não acreditou.
                Hoje eu percebi que eu consigo mover objetos pequenos com o meu pensamento. De alguma forma eu sei que não vou conseguir fazer isso com ninguém perto. De noite, eu sonho com aqueles olhos azuis. Todas as noites eu acordo assustado com a impressão de que tem alguém no quarto. Eu não sei quanto tempo ainda vou aguentar  Se alguém ler isso e souber como me ajudar, por favor. Eu preciso que alguém acredite em mim. Eu não vou conseguir suportar isso sozinho. Por favor. Qualquer um. Eu sei que eles estão de olho. Socorro.